Artículo de reflexión

Impérios do privado: notas sobre mitologias do Estado educador no Brasil (1850-1890)

Privatness' Empires: notes on the mythologies of the educator state in Brasil (1850-1890)

Imperios de lo privado: notas sobre mitologías del Estado educador en Brasil (1850-1890)

Aline de Morais Limeira Pasche*
José Gonçalves Gondra**

* Doctora de la Universidad del Estado de Río de Janeiro. Docente de la Facultad de Educación de la Universidad del Estado de Río de Janeiro. Río de Janeiro, Brasil. Correo electrónico: aline.de.morais.pasche@gmail.com
** Doctorado en la Universidad de So Paulo y posdoctorado en la Escuela de Altos Estudios en Ciencias Sociales. Profesor asociado a la Universidad del Estado de Río de Janeiro. Río de Janeiro, Brasil, vinculado al grupo de investigación del CNPq y Prociencia y presidente de la Sociedad Brasilera de Historia y Educación. Río de Janeiro, Brasil. Correo electrónico: gondra.uerj@gmail.com

Recibido: 16/05/2015 Evaluado: 20/07/2015


Resumo

Neste estudo, procuramos examinar agenciamentos específicos entre o público e o privado com base na análise do Instituto da Subvenção que, de acordo com o estudo realizado, se processa de modo ramificado em termos de financiamento direto, doação e no plano da fiscalização. Com isto, tencionamos flagrar como o princípio da escola de massa foi efetivado no Brasil, uma das condições para se compreender a genealogia do chamado "Estado educador". Neste exercício, centramos atenção nas configurações entre público e privado, tomando por base as experiências processadas na capital do Brasil, entre os anos 1850 e 1890. Organizamos nossa reflexão considerando o princípio da liberdade de ensino e seus efeitos na ordenação da escola primária e secundária pública e privada na Corte Imperial. Por fim, colocamos em debate três mecanismos associados à privatização dos recursos públicos. Com este investimento, analisamos as formas escolares privadas e as estratégias de apoio do poder público para criação, manutenção, expansão e distribuição dessas iniciativas. Para a realização da tarefa, operamos com um conjunto fontes primárias, composto por Relatórios do Ministério dos Negócios do Império e de Presidentes da Província do Rio de Janeiro, Ofícios diversos da série Instrução Pública do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, bem como propagandas publicadas no impresso de circulação anual, o Almanak Laemmert (1844-1914).

Palavras chave: Liberdade de ensino, subvenção, doaço, fiscalização, história da educãço.


Abstract

In this study, we examined specific agencements between the public and the private sectors based on the analysis of the Grant Institute, which, according to the study, is processed in branches in terms of direct funding, donations and inspection plan. With this, we intend to capture how the principle of mass school was accomplished in Brazil, one of the conditions to understand the genealogy of the "educator state." In this exercise, we focus attention on the settings between public and private, based on the experiences processed in Brazil's capital, through the years 1850 up to 1890. We organize our reflection considering the principle of freedom of education and its effects on the ordination of both primary and secondary school, public and private in the Imperial Court. Lastly, we bring into debate three mechanisms associated with the privatization of public resources. In face of this investment, we analyze the private school forms and supporting strategies of public power for creation, maintenance, expansion and distribution of these initiatives. To carry out the task, we operate with a set primary sources, composed of reports from the Ministry of Empire Affairs and Presidents of the Rio de Janeiro Province, various Letters of Public Instruction series of the General Archive of the Rio de Janeiro City and advertisements published in Almanak Laemmert, yearbook that circulated between 1844 and 1914 in Brazil.

Keywords: Freedom of education, subsidy, donation, inspection, history of education.


Resumen

En este trabajo, intentamos examinar las conexiones específicas entre lo público y lo privado, con base en el análisis del Instituto de Subvención que, de acuerdo con el estudio realizado, se procesa de forma ramificada en lo referente a financiamiento directo, donación y al plano de la fiscalización. Con esto, se intenta descubrir cómo el principio de la escuela de masa tuvo lugar en Brasil, una de las condiciones para comprender la genealogía del llamado "Estado educador". En este ejercicio, centramos la atención en las configuraciones entre lo público y lo privado, tomando como base las experiencias producidas en la capital de Brasil, entre los años 1850 y 1890. Organizamos nuestra reflexión considerando el principio de la libertad de enseñanza, y sus efectos en la organización de la escuela primaria y secundaria pública y privada en la Corte Imperial. Como propósito, discutimos tres mecanismos asociados a la privatización de los recursos públicos. Con esta inversión, analizamos las formas escolares privadas y las estrategias de apoyo del poder público para creación, manutención, expansión y distribución de esas iniciativas. Para la realización de la tarea, utilizamos un conjunto de fuentes primarias, compuesto por relatorías del Ministerio de los Negocios del Imperio y de presidentes de la Provincia de Río de Janeiro, documentos diversos de la serie Instrucción Pública del Archivo General de la Ciudad de Río de Janeiro, así como propagandas publicadas en el impreso de circulación anual, el Almanak Laemmert (1844-1914).

Palabras clave: Libertad de enseñanza, subvención, donación, fiscalización, historia de la educación.


Nos 190.706 estabelecimentos de educação básica do Brasil, estão matriculados 50.042.448 alunos, sendo 41.432.416 (82,8%) em escolas públicas e 8.610.032 (17,2%) em escolas da rede privada. As redes municipais são responsáveis por quase metade das matrículas (46,4%), o equivalente a 23.215.052 alunos, seguida pela rede estadual, que atende a 35,8% do total, 17.926.568 alunos. A rede federal, com 290.796 matrículas, participa com 0,6% do total. A consolidação destas informações por parte do inep, considerando o ano base de 2013, atesta a existência de escolas de educação básica mantidas pelos poderes público e privado. A presença desses agentes na oferta de escola tem variado ao longo do tempo, mas também em virtude do nível e modalidade de ensino. Em linhas gerais, a presença do setor privado é mais forte no ensino superior, profissional e na educação infantil; sugestivos de tais domínios são mais favoráveis à reprodução cultural e patrimonial. No entanto, não é possível aceitar esta repartição como algo autoevidente, pois entre o público e o privado há relações que necessitam ser discutidas, sendo este um dos objetivos deste exercício1.

Diagnosticar presentes também se constitui em um dos traços da história dita científica (Foucault, 1967). Traço que torna possível pensar permanências e deslocamentos ocorridos com o homem no espaço-tempo. Neste texto, operando neste registro, foca-dos no fenômeno da escolarização, procuramos pensar alguns agenciamentos que edificaram, alimentaram e vêm sendo responsáveis pela longa duração deste fenômeno e sua crescente legitimação (Vincent, Lahire & Thin, 2001). Trata-se, no caso, de modo mais bem delineado, de refletir a respeito das ações do poder público e privado na edificação do aparato escolar no Brasil2.

Neste investimento, menos que tomar estas esferas como instâncias isoladas, procuramos examinar agenciamentos específicos entre o público e o privado com base na análise do instituto da subvenção que, de acordo com o estudo realizado, se processa de modo ramificado em termos de financiamento direto, doação e no plano da fiscalização. Com isto, procuramos flagrar como o princípio da escola de massa foi efetivado no Brasil, uma das condições para se compreender a genealogia do chamado "estado educador".

Neste exercício, centramos atenção nas configurações entre público e privado, tomando por base as experiências processadas na capital do Brasil, entre os anos 1850 e 1890. Para tanto, organizamos nossa reflexão em torno da adesão ao princípio da liberdade de ensino e seus efeitos na ordenação da escola primária e secundária na Corte Imperial. Em um segundo momento, nos concentramos na descrição e análise da configuração da malha privada e, por fim, colocamos em debate três mecanismos e os argumentos associados à privatização dos recursos públicos.

No que se refere ao primeiro aspecto, a experiência brasileira pode ser caracterizada pela ausência de monopólio no campo da instrução. O argumento central em favor da liberdade do ensino se refere aos altos custos da escolarização, sugerindo a incapacidade operacional do Estado de assumir integralmente a educação popular, associado ao direito dos indivíduos em escolher o tipo de educação escolar que desejassem. A adoção do instituto da liberdade favoreceu o aparecimento das escolas estatais e privadas e também as formas híbridas, derivadas dos diferentes mecanismos acionados, como as concessões, licenças, subvenções e consignações.

A liberdade de ensino lastreou acordos diversos entre agentes distintos, como forma de assegurar os negócios privados, em especial aqueles que se encontravam associados às iniciativas da igreja católica. Ao mesmo tempo, tal instituto permite pensar essa equação com base em novos termos – o da pressão da iniciativa particular, em especial da igreja com os interesses diversos e ações permanentes para instituir e manter espaços para difusão de capital cultural associado aos seus princípios doutrinários e também como forma complementar de financiamento do seu projeto missionário. De modo equivalente, seria o caso de observar o interesse dos proprietários de imóveis e, posteriormente, os de terra e construtores que oferecem regularmente seus serviços ao maior contratador: o Estado. Daí o zelo pela preservação ou mesmo radicalização do princípio da liberdade de ensino.

Se o Estado se afirma pela definição de um conjunto de monopólios, como o que se dá com o fisco, circulação de pessoas e mercadorias, justiça, prisão e moeda o ingresso da matéria da instrução nessa rede de monopólios deveria ser objeto de uma formulação especial —fortalecer e legitimar a escola— via obrigatoriedade, por exemplo, sem jamais ameaçar a liberdade de ensino e os interesses de religiosos, proprietários e especuladores de várias ordens contemplados pela adesão a esse princípio. Adesão que, por sua vez, vai facultar a configuração de uma malha escolar diversa, heterogênea e estratificada que, no limite, está relacionada com as condições de financiamento destes projetos e o modo como o poder público atua para animar e/ou coibir tais iniciativas. Esses são, pois, os dois outros pontos para os quais este trabalho se volta, isto é, as formas escolares privadas e as estratégias de apoio do poder público para criação, manutenção e expansão das iniciativas privadas no campo da educação escolar.

Sem monopólios

Na visão de grande parte de dirigentes e intelectuais brasileiros do século XIX, para que os conhecimentos elementares do ensino primário fossem difundidos pelo Brasil, seria imprescindível a decretação da obrigatoriedade escolar. Na capital do Brasil (Rio de Janeiro), tal medida se efetivou por meio do Regulamento da Instrução Primária e Secundária da Corte de 1854, definindo como público alvo os menores livres e vacinados, entre 7 e 14 anos3.

Entretanto, o preceito legal que obrigava os pais ou outros responsáveis a cuidarem da instrução primária das crianças sob pena de multa, esbarrou em muitas dificuldades. Os próprios dirigentes do aparato estatal observavam que não havia oferta suficiente de escolas na capital do Império, quadro agravado nas localidades mais afastadas das áreas urbanizadas e com uma população mais dispersa4.

No que tange à distribuição das escolas públicas e privadas na capital do império, o que se observa nas decisões de criar e manter escolas, e nos critérios de expansão da iniciativa particular, é que tais decisões foram, via de regra, orientadas pela divisão administrativa das freguesias em urbanas e rurais. A justificativa é que a maior demanda era proveniente das localidades com maior número de habitantes. Tal orientação indicia que a ação estatal hierarquizava os estabelecimentos e definia políticas distintas para o ensino primário na cidade. Priorizou-se a distribuição e a localização das casas de escolas nas freguesias urbanas, mais centrais e populosas, não somente em atendimento às possibilidades mais expressivas da demanda da população escolar, mas, sobretudo, como instrumento de visibilidade das próprias escolas e de uma determinada direção política na cidade (Schueler, Limeira, 2008).

A diretriz que articula densidade demográfica e de escolas remete a um princípio geral da institucionalização. Para que uma instituição se efetive é necessário ter uma população fixa, contabilizada, caracterizada, como condição para justificar medidas globais voltadas para esse conjunto. Trata-se de um princípio comungado pela racionalidade política, um princípio geral de governo das populações amparado em um cálculo econômico e político, cujo resultado faz coincidir a presença dos equipamentos públicos e privados de modo proporcional à demografia.

De acordo com o quadro do Ministro dos Negócios do Império do ano de 1864, havia 6.967 meninos e meninas matriculados nos colégios particulares ou escolas públicas das "freguesias de dentro" (urbanas), enquanto nas "freguesias de fora" (rurais) havia 590 meninos e meninas matriculados, sem a existência de colégio particular para meninas, conforme quadro produzido pela Inspetoria Geral de Instrução Primária e Secundária do Município da Corte de 8/4/1865.

Este quadro, considerando as condições em que tais informações foram produzidas e consolidadas, apresenta um conjunto de indícios que ajudam a pensar a configuração do aparato escolar na capital do Império. Um deles remete à totalização da população livre. Tratava-se de uma cidade de 300 mil habitantes, havendo 7.557 alunos nos estabelecimentos públicos e particulares, isto é, algo da ordem de 2.5% da população nas escolas primárias e secundárias. Outro destaque aponta para uma maior concentração nas escolas particulares, com exceção das freguesias de fora. Este traço parece reforçar o caráter comercial dessas iniciativas. Essa inversão torna possível pensar a preocupação com o lucro, com a reprodução do capital, tanto o cultural, como o financeiro princípios que rege as deliberações dos proprietários das escolas.

O relatório do ano de 1871 exibe o número de estabelecimentos particulares distribuídos no município da Corte. Observando este censo, percebe-se que nas freguesias da cidade existiam 49 colégios de instrução primária para meninos (alguns com ensino primário e secundário no mesmo colégio), 51 colégios de instrução primária de meninas, e mais 106 de instrução primária para ambos os sexos. Nas áreas rurais da cidade, havia 2 colégios masculinos, 1 colégio feminino e 3 colégios de educação mista. Considerando a soma destes números, conclui-se que no início da década de 1870, havia registros de 212 colégios particulares com oferta de ensino primário na capital do Império. A permanência do predomínio de colégios particulares funcionando nas áreas urbanas parece reforçar a hipótese da rentabilidade e eficácia máxima em termos de reprodução material e cultural.

As iniciativas de criação de escolas públicas e particulares são mais expressivas a partir da década de 1870. O impulso à atuação dos particulares fazia parte da política de Instrução Pública do Governo Imperial e as estratégias de apoio às instâncias privadas estavam nos discursos favoráveis e nas legislações que lhe garantiam o direito de liberdade de ensino, como a Constituição de 1824, a Reforma Couto Ferraz (1854) ou a Reforma Leôncio de Carvalho (1879).

Nas primeiras partes do Regula-mento da Instrução Primária e Secundária do Município da Corte Imperial (organizado em três títulos e onze capítulos), localizam-se as normas de controle específicas para instrução primária da malha pública e privada. Grosso modo, as medidas instauradas estabelecem critérios de abertura e funcionamento para colégios particulares, criam um órgão de governo —a Inspetoria Geral da Instrução Primária e Secundária, responsável pela vigilância e fiscalização do ensino público e particular (estabelecimentos, profissionais, materiais, etc.)—, determinam as condições de ingresso e exercício no magistério público e particular, estabelecem normas disciplinares para professores e diretores de instituições, condições e regime a que as escolas estariam submetidas (saberes, métodos de correção, disciplina, tempo escolar, premiações, exames etc.). Nestes projetos de codificação do campo educativo da capital do Império brasileiro também estão inscritos professores que são profissionais liberais, ensinam "particularmente" ou lecionam "n'esses estabelecimentos particulares" (ou ainda, aqueles que abrem "uma aula particular").

No que se refere à instrução secundária, o regulamento estabelece que "No caso de falecer algum diretor de estabelecimento", o presidente da província poderá "dispensar da idade de 25 anos o filho ou herdeiro maior de 21, a fim de continuar a mantê-lo e dirigi-lo, se não tiver contra si algum motivo de interdicção". Acerca desta exposição, pode-se compreender que a Reforma de 1854 estabelece a garantia, manutenção e reconhecimento da aprendizagem por transmissão familiar do ofício docente, sendo esta uma prática bastante recorrente na sociedade imperial5.

Apesar de considerar essas regras como obstáculos, foi expressiva a ampliação da malha privada de ensino nas décadas de 1850 a 1880 (Pasche, 2014). No cenário vislumbrado, é possível notar a presença de diversas forças que criaram, dirigiram e mantiveram em funcionamento inúmeras iniciativas particulares, sociedades, aulas gratuitas e associações com oferta regular de ensino. Tais iniciativas produziram experiências heterogêneas, decorrente de investimentos de grupos variados, como os religiosos, comerciantes, intelectuais, profissionais liberais e outros agentes sociais e se constitui em atestado da instrução presidida pelo instituto da liberdade, ainda que regulada pelo poder público.

Instrução, comércio e fé

A presença católica no comércio da instrução, por exemplo, configura-se uma tradição reconhecida pela historiografia da educação tanto por suas iniciativas formais (como colégios, seminários, internatos), ou informais (como sociedades, associações e aulas gratuitas mantidas em espaços adaptados, nas igrejas ou nas casas paroquiais). Exemplo de um estabelecimento católico de expressiva visibilidade na capital do império era o colégio mantido pelas Irmãs de Caridade, como consta no anúncio do Almanak Laemmert:

Havia, do mesmo modo, uma expressiva participação dos cultos acatólicos no movimento educacional do Oitocentos, o que ratifica o caráter diversificado do comércio da instrução. Sabe-se dos pedidos para abrir uma escola formal de culto presbiteriano em 1866, na província de São Paulo. Em anos posteriores (1870), George W. Chamberlaine fundou uma escola protestante que começou como um pequeno estabelecimento dirigido pela senhora Mary Chamberlaine, em sua própria casa (também na província paulista). No ano seguinte, o Collegio de Chamberlaine mudou-se e o nome oficial adotado para a instituição foi Escola Americana, depois, em 1890, passou a ser Collegio Mackenzie6.

No que se refere aos cultos espíritas, não cristãos ou seitas, como o kardecismo, o candomblé, a maçonaria e o judaísmo, os mesmos ainda aparecem de forma tímida nos investimentos da historiografia da educação. Uma das possíveis razões é a dificuldade de localizar fontes e documentos, visto que a maioria desses movimentos de fé foram perseguidos, proibidos ou exercidos de forma velada. De acordo com Davi Vieira, o kardecismo procurou criar "sociedades filosóficas" e, mesmo depois do advento da República, foi perseguido sob vários pretextos como, por exemplo, o exercício ilegal da medicina.

As práticas religiosas africanas eram consideradas exemplos da barbárie, além de serem proibidas pelas autoridades —os africanos e seus descendentes tiveram de sincretizar sua religião com o catolicismo—, ou disfarçar suas reuniões religiosas como "escolas de samba", "candomblés" e "macumba" (Vieira, 1978, p. 376). Havia também judeus no Brasil do século XIX, e eles ajudaram os protestantes na sua demanda por liberdade de culto.

Pouco se tem pesquisado sobre a atuação dos espíritas nos campos da educação e amparo da infância, mas há trabalhos importantes, como o que investiga a história do abrigo espírita dirigido por Anália Franco — considerada uma das pioneiras na área da educação infantil em São Paulo. A partir da revista Reformador —órgão de divulgação da Federação Espírita Brasileira, fundado em 1883—, Alexandre Azevedo esquadrinha algumas práticas espíritas de assistência e escolarização da infância sob o signo do espiritismo (Azevedo, 2010).

Independentemente da força mobilizadora, o comércio da instrução se desenvolveu de forma significativa no século XIX, com amparos e regras estabelecidos pelo poder público, houve mesmo um entrelaçamento de agentes sociais diversificados que fizeram a engrenagem do ensino se estruturar como um ramo de investimento promissor –sem esquecer que, na periferia deste processo outros ramos do comércio geral também se desenvolveram, tais como editoras e empresas de mobiliário e material escolar.

Vestígio desta diversidade que compunha o quadro geral do ensino pode ser visto no ofício do Inspetor Geral no final da década de 1870:

Ao lado da associação católica que promovia naquele ano o ensino da doutrina cristã numa escola dominical em Niterói, a comunidade evangélica de Petrópolis conservava uma escola particular para ensino primário e língua alemã dirigida pelo pastor da igreja e o padre Moreira que dirigia um colégio interno de ensino secundário para meninos. Já os proprietários da fazenda Boa-União, em Itaboraí, mantinham uma escola para meninos pobres da localidade com subvenção pública. Mas, em que consistia o mecanismo de subvenção? Como pode ser caracterizado? Em que argumentos se ancora?

Subvenções, doações e fiscalizações

Tencionando promover e disseminar a instrução a uma parcela cada vez maior da população, o Estado Imperial lançou mão de mecanismos de associação com a iniciativa privada. Autorizando e legitimando o auxílio financeiro (e/ou concessão de espaços, doação de materiais, livros, vestuário) para os colégios particulares, o poder público procurou assegurar o atendimento de meninos e meninas, homens e mulheres em "extrema pobreza" no ensino primário da Corte.

Os primeiros registros acerca das práticas formais de subvenção pública em estabelecimentos particulares na capital do império datam de período posterior ao decreto que estabelece o Regulamento de 1854, segundo o qual (Artigo 57º) os menores de 12 anos, encontrados "vagando pelas ruas da Corte", em estado de pobreza ou "indigência", deveriam ser matriculados nas escolas públicas ou particulares subvencionadas pelo Estado7. O Artigo 115º, outro que também faz menção a esses procedimentos, registrava que, ao lado dos colégios, professores que mantinham aulas particulares também poderiam ser beneficiados com essa prática.

Interessados nas vantagens de associar suas forças às dos particulares, os legisladores fomentaram iniciativas como aquelas e, em 1889, registrou-se um número de 46 colégios subvencionados (520 alunos atendidos), mais sete cursos noturnos (284 alunos), e seis escolas mantidas pela Sociedade Promotora da Instrução (850 alunos). Um total de 59 subvenções nas aulas/escolas situadas na Corte Imperial, atendendo a 1.654 meninos e meninas pobres.

Em 1857, a professora particular Francisca de Paula Moraes e Lima, que mantinha um colégio para meninas na Freguesia da Lagoa, encaminhou ofício ao "Exmo Senhor conselheiro Euzébio de Queiroz Matoso Câmara", Inspetor de Instrução Primária e Secundária do Município da Corte, solicitando subsídios para aluguel de sua "casa de escola", pois, segundo a mesma, o valor havia aumentado muito. Para justificar seu pedido, a professora argumentava a necessidade daquelas aulas para a localidade, por conta da distância em que as aulas públicas se encontravam. Ao mesmo tempo, informava receber gratuitamente em sua casa de escola muitas meninas pobres que não podiam pagar a pensão cobrada às demais alunas particulares.

Como deixam evidentes as fontes pesquisadas, as subvenções eram concedidas a partir de justificativas bastante recorrentes: distância acentuada da localidade em que se situava a escola pública, e o número elevado de meninos e meninas em estado de pobreza não atendidos pelas escolas públicas, por conta do excesso de alunos já matriculados naqueles espaços. Muitas vezes essas justificativas articulavam-se nos documentos. Não apareciam separadas, mas somavam-se como se, juntas, pudessem garantir um resultado mais positivo. Entretanto, viu-se que, mesmo juntas, uma delas (alunos pobres ou escola pública distante) era ressaltada com mais ênfase. Ora optava-se por fazer referência à extrema pobreza e mendicância em que se encontravam os meninos e meninas da respectiva localidade, ora privilegiava-se, no discurso, destacar que a escola pública era demasiadamente longe.

Os ofícios que relatavam problemas referentes à escola pública, como justificativa para solicitação do benefício de subvenção dos cofres governamentais, apontavam a ausência na referida freguesia, a demasiada distância que a mesma se encontrava, o difícil acesso ou, ainda, a falta de vagas naquelas que estavam em funcionamento.

Com base na documentação investigada, grosso modo,o procedimento de solicitação/concessão da subvenção mobilizava autoridades da administração da Instrução Pública, tais como Delegados, Inspetores, Conselheiros, Secretários, Ministros e membros da Inspetoria Geral de Instrução Primária e Secundária da Corte (igipsc). Os pedidos dos proprietários dos colégios e/ou professores eram encaminhados aos Delegados das freguesias, acompanhados dos comprovantes que justificavam a solicitação.

A partir dos mapas de matrículas ou abaixo-assinados de moradores, responsáveis e autoridades políticas ou religiosas locais, deveria estar registrada e garantida a frequência de, no mínimo, 10 meninos ou meninas pobres. Com um parecer dos delegados, favorável ou não, fornecido após a constatação da veracidade das informações, e da necessidade ou não daquelas aulas particulares para os moradores da região, o ofício, com a documentação anexa, era encaminhado à autoridade superior: o Inspetor Geral da Instrução Primária e Secundária. Este, por sua vez, ao ler os processos de todos os delegados do Município da Corte, aprovava os que julgava convenientes em conformidade com a dos Delegados e encaminhava todos os processos, com seu parecer, ao Conselho Diretor da Instrução Pública, a quem competia o veredito final: conceder ou negar as subvenções solicitadas.

Os membros do Conselho Diretor reuniam a documentação acumulada nas etapas que se seguiram ao pedido inicial, encaminhando-as ao gabinete do Inspetor Geral da Instrução (ou direto ao Ministro), para que o mesmo a fizesse chegar ao Ministro dos Negócios do Império para controle, conferência e publicação nos Relatórios dos Ministros do Império, os quais davam a ver os números de subvenções concedidas, valores, nomes dos beneficiados e a localidade em que se encontravam os respectivos estabelecimentos. A documentação noticiava e prestava conta das subvenções concedidas aos estabelecimentos particulares de toda Corte Imperial, por meio de tabelas e mapas de alunos da instrução primária matriculados em colégios particulares dependentes da Inspetoria, por freguesia ou, ainda, pelos mapas das escolas e professores subvencionados, nos quais, constavam freguesia, escolas e professores, valores da subvenção e/ou consignação, por exemplo.

Na contabilidade do Estado Imperial, o valor concedido como benefício mensal seria proporcional ao número de crianças atendidas pelo estabelecimento de ensino particular, embora também estivessem sendo incluídas nos cálculos as diferenças de custo para manter o aluguel da casa ou prédio escolar, dependendo da localidade em que os mesmos estivessem situados – se em freguesias de dentro ou de fora. Em 1874, o menor valor foi de 30 mil réis mensais, destinado ao colégio particular de Maria Gertrudes, na freguesia urbana do Engenho Novo. Já o maior valor concedido como subvenção foi de 150 mil réis mensais, em 1875, ao curso noturno de ensino primário e ofícios para crianças, jovens e adultos (a partir de 6 anos de idade) da Sociedade Propagadora da Instrução às Classes Operárias da Lagoa, também localizada em freguesia urbana8.

Anualmente a Inspetoria Geral da Instrução realizava uma consulta aos delegados conferindo o funcionamento das aulas subvencionadas, questionando a procedência ou não de manter tais financiamentos, como pode ser observado no caso de uma escola de Copacabana:

Em cumprimento do que me há ordenado V. Exª Revedmo em relação à continuação da subvenção precedida Irmandade de Nossa Senhora de Copacabana para a escola que fundou e mantem anexa a sua Capella, acho de toda a justiça e conveniência a concessão do que pede, jus que é notoriamente reconhecido que essa escola tem prestado serviços necessários dos habitantes circunvizinhos, [...] pudesse também prestar-se aos adultos nacionais filhos de pescadores, e muitos já na mesma industria ali existentes e sua mais completa ignorância. (agcrj, Códice 11.3.40, 1872, p. 4)

A manutenção desta escola parece estar vinculada ao apoio público, condição para que pudesse atender um público que não tinha condições de pagar pelo serviço prestado. O ofício encaminhado pelo delegado à Inspetoria, que à época era administrada pelo Frei José de Santa Maria Amaral (Inspetor entre 1869 e 1873), sugere a extensão do benefício da subvenção para meninos pobres, filhos de pescadores que se encontravam na "mais completa ignorância". Dois anos depois, a demanda pela subvenção é atualizada nos termos que se seguem:

Em obediência ao que me determinou V. Exª em seu ofício de 9 da corrente tenho a informar que convém ser continuada á Irmandade de Nossa Srª da Copacabana, a subvenção que lhe foi concedida pelo aviso de Ministério do Império de Agosto de 1866, e que ate agora lhe tem sido mantida para a continuação da escola de meninos a cargo da mesma Irmandade. A escola funciona com regularidade, com o nº de 20, 22 e 23 alunos diariamente, sendo o Professor Luiz Antonio Goulart dedicado ao ensino. (agcrj, Códice: 11.3.40, 1874, p. 4)

A resposta positiva assegurou a continuidade das aulas do ensino primário para meninos, ministradas pelo professor Luiz Antônio. Tal procedimento parece consagrar a disposição do estado em educar, delineando igualmente certa configuração da relação entre público e privado e, de modo especial, por meio de proposições vinculadas à igreja católica.

A demanda pela educação escolarizada se legitimava socialmente a partir de diversas frentes, tanto a população reclamava por vagas nas escolas públicas ou por subvenção nos colégios particulares, quanto o comércio da instrução se expandia, contando muitas vezes, com a colaboração do Estado para seu desenvolvimento. Assim, as autoridades defendiam cada vez mais a necessidade de viabilizar um projeto de escolarização amplo, acessível a todos os meninos e meninas pobres, ignorantes, órfãos e abandonados. Neste caso, pode-se pensar que a subvenção se sustentava como parte de um projeto político, mas também por conta das redes humanas, dos vínculos pessoais estabelecidos entre as autoridades na administração pública do ensino e as iniciativas particulares.

Comprometidos com projetos civilizatórios, os dirigentes imperiais ampararam diversas iniciativas particulares, considerando os pertencimentos das mesmas, como foi o caso da loja maçônica que mantinha aula noturna para alunos de Resende:


9

Como se pode notar, o apoio possui base legal consistente, indício de que a tradição não se configurava em uma decisão exclusiva dos homens do executivo. O lastro oficial não se reduzia e não se resumia à destinação de recursos financeiros. O financiamento do privado apresenta formas complementares e mais sutis, como se pode ver nos mecanismos de doação e de uma fiscalização diferenciada.

Outra técnica de apoio ao comércio da instrução consistia na doação de materiais para o funcionamento administrativo e pedagógico, como se pode notar no caso do atestado da Associação Nossa Senhora da Conceição:

Recebi do Illmo e R.mo Sr. D. Abadde Frei Luiz de Santa Theodora França, digníssimo Delegado da Instrução pública dessa Freguesia de Nossa Senhora da Ajuda da Ilha do Governador, um livro novo numerado e rubricado para as matrículas dos alunos de minha escola juntamente dezoito exemplares da Historia Universal, traduzida pelo desembargador Lourenço Jose Ribeiro, nove de gramática de Cyrillo, doze ardozias. (agcrj, Códice 15.3.19, 1876, p. 21)

Neste caso, a doação dos livros de matrícula e dos compêndios para ensino dos alunos na instituição somava-se a outras formas de auxílio, que se estendeu às diversas instituições religiosas, católicas ou não, laicas, formais e informais, desde que a inexistência da escola pública fosse comprovada. Na freguesia da Gávea, por exemplo, quando foi estabelecida uma escola pública destinada ao atendimento dos meninos da localidade, a escola mantida pela irmandade católica na igreja teve sua subvenção interrompida:

Illmo e Exmo – Declaro a V. Exª, para os fins convenientes, que por aviso do Ministro dos Negócios do Império, datado de 20 do corrente mês, me foi comunicado que, existindo escola pública para o sexo masculino na freguesia de Nossa Senhora da Gávea, deve cessar d'essa data em diante a subvenção concedida à escola que no consistório da Igreja ali existente fora crescida pela respectiva Irmandade. (AGCRJ, Códice 11.4.6, 1875, p. 6)

A suspensão do benefício se constitui em prova adicional da existência de transferência dos recursos públicos para iniciativas particulares. Outro aspecto da relação público-privado pode ser percebido pelo exame da emergência e funcionamento do dispositivo da fiscalização. Quando observamos a engrenagem do serviço de inspeção em funcionamento, nota-se que os espaços privados de escolarização estavam, de alguma maneira, menos sujeitos à vigilância e fiscalização do governo que as escolas públicas, e, por isso, mais suscetíveis para burlar as normas em vigor, promovendo uma diversidade de práticas educacionais, contratando profissionais sem habilitação, adotando métodos, saberes e compêndios sem autorização; dentre outros encaminhamentos.

Ao longo da segunda metade do século XIX, os processos de subvenção estavam bastante disseminados não apenas na capital, mas também na Província do Rio de Janeiro. Em alguns municípios, o número de escolas subvencionadas era maior que o número de escolas públicas, como consta no relatório do presidente da província do RJ em 1885.

Na cidade de Capivari havia 3 escolas públicas para meninos e 9 subvencionadas. Já em Itaboraí havia 10 escolas públicas e 12 subvencionadas. Tais números expressam a presença significativa da malha privada e subvencionada em comparação com as escolas públicas. No que se refere ao gênero, havia um quantitativo maior em relação às escolas públicas masculinas (total de 257) e subvencionadas (total de 71), comparando aos números de escolas públicas femininas (total de 174) e subvencionadas (total de 31).

Se o percentual das escolas subvencionadas chama atenção, cabe ressaltar a longevidade do instituto e sua capilarização na escala provincial e, provavelmente, na escala nacional.

No final da década de 1880, em toda a Província do Rio de Janeiro, havia 246 estabelecimentos particulares de instrução primária, subvencionados pelo Estado Imperial, atendendo a 5.679 alunos. No país havia 457 colégios subvencionados pelo Tesouro Nacional em 1888 (Almeida, 2000, p. 283). A partir da leitura do Mapa da Diretoria Geral da Instrução Pública Municipal do Distrito Federal, sabe-se que, no ano de 1894, havia 41 colégios particulares subvencionados na cidade do Rio de Janeiro (que atendiam a um total de 1.577 alunos e alunas). Ou seja, inobstante o advento da república, uma determinada forma de gerir e fazer funcionar a instrução indica, que os atendimentos aos interesses difusos dos comerciantes da instrução foram mantidos.

Considerações finais

Compreender o processo de escolarização exige atentar para sinuosidades que tornam envelhecidas afirmações de que a instrução do povo por intermédio da escola foi um projeto criado e imposto unicamente pelo Estado. Diferentemente desta proposição, procuramos trabalhar com a hipótese da existência de demandas da sociedade que aderiram ao processo de escolarização como projeto social, favorecendo e legitimando a imbricação de forças públicas e privadas – característica importante da constituição da escola moderna no Brasil10.

Ao lado das missões religiosas, as agremiações, associações e sociedades particulares, leigas ou religiosas, foram mobilizadas por alguns políticos, médicos, advogados, professores públicos, fazendeiros, abolicionistas, comerciantes, estrangeiros, para engrossar a campanha pela instrução. Integrando um movimento geral que proclamava a necessidade de disciplinar e "moralizar" a população pobre da cidade, tais empreendimentos revelavam não apenas o dinamismo, a diversidade e a complexidade das propostas educacionais, mas sobretudo, a existência de diálogos e alternativas aos projetos defendidos pelos dirigentes do Estado. Algumas dessas agremiações criaram escolas, asilos, recolhimentos, aulas noturnas, cursos avulsos, destinados às crianças, jovens e adultos pobres.

Somada às subvenções destinadas aos meninos pobres não matriculados nas escolas públicas, muitos estabelecimentos, como o Colégio do Padre Venerando, recebiam meninos ou meninas nas suas aulas como pensionistas sem que os mesmos pagassem as mensalidades. No caso dos estabelecimentos religiosos, a perspectiva assinalada poderia ser a da caridade, mas este fato não se caracterizava como exclusividade da malha privada religiosa. Sem negar que estas iniciativas também abraçaram a causa da educação, somando forças com o Estado, é possível pensar que tal ação funcionava como espécie de moeda de troca nas relações necessárias que os comerciantes da instrução estabeleciam com as autoridades públicas. Ou seja, como havia uma rígida normatização que organizava o ensino, autorizando o funcionamento dos colégios periodicamente, fornecendo título de habilitação para o magistério, fiscalizando as práticas pedagógicas, os proprietários e professores daqueles colégios se associavam às medidas de caráter filantrópico com apoio do poder público. Com isso, a iniciativa de promover a instrução para a população pobre – entendida como um conjunto ameaçador, a ser moralizado, disciplinado, instruído, controlado, governado de acordo com diretrizes, interesses e projetos políticos globais, mas também foi orientado pelas disposições dos proprietários de escolas.

Tanto quanto considerar que havia colégios particulares de todos os tipos –caros e com arquitetura de grande porte ou baratos, adaptados aos espaços possíveis, com pequena estrutura–, e escolas públicas espalhadas pelas freguesias urbanas e rurais da cidade, é mister vislumbrar a subvenção como um canal de acesso de uma população pobre e, muitas vezes, marginalizada dos processos educativos formais. Neste caso, um grande número de filhos e filhas de pequenos comerciantes, índios, pescadores, protestantes, lavadeiras, brancos, órfãos, brasileiros, filhos do "ventre livre" de mulheres escravas (a partir de 1871), espíritas, ambulantes, pintores, estrangeiros e negros puderam experimentar de diversas maneiras o processo da escolarização.

Processo este que se deu (e ainda se dá) de modo assimétrico e desigual, considerando as populações afetadas pela forma escolar. Assimetria e desigualdade que se encontram associada às concepções em curso, projetos sociais e disposições dos agentes interessados na escolarização. Um dos pilares preservados na configuração da escola consiste no instituto da liberdade de ensino, sustentado pelo duplo argumento da incapacidade do poder público em atender ao conjunto da população e do direito dos indivíduos à escolha da escola desejada. Para tanto, temos assistido a uma espécie de consórcio entre poder público e iniciativa privada, seja no regime das subvenções, compra de vagas, doações, isenções fiscais, fiscalização diferenciada e compra de pacotes de empresários do ensino. Alguns desses mecanismos de privatização do público emergiram no século XIX, sofisticando-se ao longo dos anos. Um exemplo do refinamento do império do privado pode ser percebido por intermédio de políticas recentes adotadas pela prefeitura do Rio de Janeiro.

As novas políticas se constituem em estratégia para se pensar o caráter comercial da instrução. Os convênios da Prefeitura do Rio de Janeiro com a iniciativa privada, vêm sendo presididos por diretrizes de várias ordens. Assinalamos apenas uma que se constitui em efeito desse tipo de medida. Trata-se de uma das parcerias da Prefitura com o Instituto Alfa e Beto11, criado em novembro de 2006, a partir de uma iniciativa da família Oliveira, presidido pelo João Batista Araujo e Oliveira, tendo como secretária a professora Mariza Rocha Oliveira. O presidente é um psicólogo formado pela PUC-MG em 1969, com mestrado e doutorado nos Estados Unidos, tendo trabalhado como consultor em vários organismos nacionais e internacionais. No caso em questão, o Instituto opera com a chamada "Pedagogia do Sucesso" e oferece um programa descrito como estruturado, com materiais destinados a professores e alunos descritos como defasados, no âmbito do chamado "Programa de Aceleração" I e II. Esse programa de realfabetização desarquiva o uso das cartilhas, como recurso e método de ensino e reconstitui o professor como um grande receptáculo de materiais, modelos de como fazer, capacitação, orientação ao longo do ano, agenda e manuais de registro do progresso dos alunos, no que se refere à frequência, andamento, resultados e também assistência antes de cada aula ou lição para que o professor também possa dar certo, como anuncia o presidente do IAB12.

Os produtos recorrem a estratégias de persuasão as mais diversas. Ancorada em um diagnóstico trágico relativo ao fracasso escolar, propõe como solução esse tipo de violência, adquirida pelo poder público. A que custos? Para se tiver uma ideia, o programa estruturado é composto por 14 produtos, destinados a vários níveis. O que se volta para a pré-escola I, por exemplo, é composto 8 produtos, totalizando R$125,00 por aluno. O destinado ao Programa de Aceleração da Aprendizagem I é composto por 21 produtos, totalizando R$170,12 por aluno. Uma classe com 25 alunos mais um professor, chegaria ao montante de R$4.423,12. Já o paa ii, com 20 produtos, custaria R$171,24 por aluno. Basta multiplicar o número de classes da cidade com a maior malha escolar da América Latina (1457 escolas, 247 creches públicas, 167 conveniadas e 202 espaços de desenvolvimento infantil)13 para observarmos o volume de recursos públicos investidos nessa parceria14.

Para encerrar, no material destinado a alfabetização, a lição 4 pretende fixar o fonema M como parte da aprendizagem da escrita da língua materna. Inicia com um belo texto do Daniel Pennac (Como um romance), que tematiza a questão da aprendizagem da leitura-escrita, em cujo texto figura a palavra mamãe. Na sequência, o aluno é remetido para um conjunto de atividades de modo a reconhecer e fixar o fonema M. São atividades de leitura, cópia, escrita, reconhecimento de objetos que tenham a letra M, etc. Para não me alongar e para ficar em um único exemplo da experiência a que alunos e professores estão sendo submetidos para acelerar a aprendizagem, o exercício 26 dessa lição consiste em um exercício de cópia do seguinte texto:

Eu amo a mamãe.
A mamãe me ama.
A lama melou a mão da Amália.
Luma mia: miau, miau!

Trata-se de um pequeno exemplo de como o poder público, aliado a determinados interesses empresariais, privatiza e violenta ainda mais a população mais agredida, cuja violência se perpetua e se legitima por meio do próprio aparelho do estado, sob o selo da preocupação com a qualidade e com a recuperação daqueles que descreve e classifica como defasados.

Diagnosticar presentes se constitui em gesto que pode nos alertar para os novos agenciamentos promovidos entre a esfera pública e os interesses mercantis e para a invasão e regulação do espaço público pelos interesses comerciais, seja pela atualização de mecanismos mais remotos, seja pela invenção de novas formas de se privatizar o público e alargar as possibilidades de intervenção do chamado estado educador.


Notas

1 INEP, 2014. http://portal.inep.gov.br/resumos-tecnicos. Acesso em 2/4/2015.
2 A definição das fronteiras nacionais delineia o que se constitui em monopólio do Estado e os contornos e relações entre os aparatos públicos e privados. No entanto, tal configuração remete a um debate transnacional, com soluções que apresentam linhas comuns e elementos distintos nas diferentes experiências. Para nos situamos no plano da América, a respeito da modelagem do dispositivo pedagógico no México, Colômbia e Argentina conferir, Rockwell (2007), Rockwell & Vera (2013); Rockwell (1998), Martínez Boom (2004); Martínez Boom (2009); Martínez Boom & Vismara (2014); Arata & Southwell (2014); Narodowski & Moschetti (2013); Narodowski & Baez (2006); Narodowski & Andrada (2002.) e Narodowski & Boom (1996), entre outros.
3 O debate a respeito da obrigatoriedade escolar assume ritmos e formas distintas no Brasil. A esse respeito, dentre outros, recomendamos a leitura de Horta (1998), Neves (2000), Almeida (2013) e Sá, Vidal e Gaspar (2013).
4 A geografia da Corte Imperial, do Município Neutro (com estimativa de trezentos mil habitantes), se estabelecia pela divisão entre Freguesias de fora (rurais) e de dentro (urbanas). Aquelas compreendiam Irajá (fundada em 1644), Guaratiba (1755), Paquetá (1769), Ilha do Governador (1710), Inhaúma (1749), Campo Grande (1673), Santa Cruz (1833) e Jacarepaguá (1661). Já as "principais" eram: Sant'Ana (1814), Santa Rita (1751), Sacramento (1826), São José (1751), Santo Antônio (1854), Glória (1834), Lagoa (1809), São Cristóvão (1856), Engenho Velho (1762), Espírito Santo (1865) e Candelária (1634).
5 No Almanak Laemmert, num anúncio de 1859, a Srª Maria de Jesus, proprietária do Colégio N. Senhora da Conceição, de instrução primária e secundária para meninas, para registrar credibilidade ao seu estabelecimento, diz ser filha de uma professora publica já falecida. E que quer deixar claro que entende desta "árdua tarefa de ensinar", pois, sempre a acompanhou neste trabalho, ajudando-a. O envolvimento familiar com as atividades de ensino, quando as mesmas eram estabelecidas em colégios que também funcionavam como residência de seus proprietários, suscita a necessidade de estabelecer normatizações que alcancem tais experiências. Acerca disso, conferir Schueler & Souza (2007).
6 A respeito da presença de protestantes no campo da educação formal, os estudos de Hilsdorf (1985) e Nascimento (2011), dentre outros.
7 O Decreto 7247, de 19 de Abril de 1879 (Reforma Leôncio de Carvalho), reafirma as medidas de subvenção a estabelecimentos particulares: Art 2.º Subvencionar nas localidades afastadas das escolas públicas, ou em que o número destas fôrfor insuficiente, tanto na Corte como nas províncias, as escolas particulares que inspirem a necessária confiança e mediante condições razoáveis se prestem a receber e ensinar gratuitamente aos meninos pobres da freguesia; 3.º Contratar nas províncias, por intermédio dos respectivos Presidentes, Professores particulares que percorram anualmente um certo número de localidades e, demorando-se em cada uma delas o tempo preciso, reúnam os meninos e meninas da vizinhança e lhes deem os rudimentos do ensino primário; 4.º Criar ou auxiliar nas provinciais cursos para o ensino primário dos adultos analfabetos.
8 Não se sabe a quantidade de alunos atendidos no colégio de Maria Gertudres ou na Sociedade Propagadora no referido ano. Mas, em 1872, inscreveram-se nas aulas oferecidas pela referida sociedade 168 alunos: 1 paraguaio, 1 espanhol, 4 africanos, 52 portugueses e 110 brasileiros, cujas idades variavam entre 10 e 45 anos. Do total, 93 eram originariamente analfabetos. A maior parte dos alunos era formada por homens livres nacionais. A presença dos portugueses, maioria entre os imigrantes que desembarcaram na Corte, era também marcante, embora haja outros estrangeiros entre os alunos, inclusive, 4 africanos. Para o ano de 1873, foram registrados 111 alunos: 1 espanhol, 2 italianos, 48 portugueses e 58 brasileiros, entre 13 e 44 anos (aGcrJ, Códices 11-3-40 e 15-3-6). Conferir também (Schueler, Limeira, 2008).
9A loja Maçônica Lealdade e Brio recebeu em 1998 uma Moção de Congratulações da ALERJ "em razão dos relevantes serviços prestados à sociedade fluminense e, em especial, à comunidade onde está sediada, com a implementação de projetos e ações no âmbito social, decisivos para o desenvolvimento municipal e, por conseguinte, do Estado do Rio de Janeiro" (Disponível em http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/scpro.nsf/96e3a0825d4c216b0325653200648945/5 5738a8809147fc5032565fa00670f8d?Open-Document).
10 Acerca disso, conferir Gondra & Lemos (2004).
11 O Instituto Alfa e Beto é uma organização não governamental, sem fins econômicos, que tem como missão promover políticas e práticas de educação baseadas em evidências. http://www.alfaebeto.org.br Acesso em 02/04/2015.
12 http://www.alfaebeto.org.br/produtos_acelera.php. Acesso em 30/3/2010.
13 http://www.rio.rj.gov.br/web/sme/exibecon-teudo?article-id=96310 Acesso em 02/04/2015
14 A rede conta atualmente com 658.508 alunos matriculados, sendo atendidos por 41.661 professores, 6.052 agentes auxiliares de creche, 941 secretários escolares e 16.303 funcionários de apoio administrativo.


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