Tecné, Episteme y Didaxis: TED
0121-3814
Universidad Pedagógica Nacional, Facultad de Ciencia y Tecnología
https://doi.org/10.17227/ted.num56-1887

Recibido: 7 de marzo de 2023

Explorando o jogo Awelé, da família Mancala, com estudantes de Pedagogia


Explorando el juego Awelé, del grupo Mancala, con estudiantes de Pedagogía


Exploring the Awelé Game, from the Mancala Family, with Pedagogy Students

S. Alves Silva, 1 I. Pereira da Silva, 2 M. Gomes da Silva Brito, 3

Mestra em Ensino de Ciências e Matemática pela Universidade Federal de Alagoas, Professora dos Anos Iniciais da Secretaria Municipal de Edu cação de Lagoa da Canoa-al, Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Educação, Ciências e Tecnologias Afro-Latino-Americanas (gp-ecitalas/ufal/ cnpq), Campus Arapiraca, Universidade Federal de Alagoas, Arapiraca, Brasil, suzi24soso@gmail.com Universidade Federal de Alagoas Universidade Federal de Alagoas Arapiraca Brazil
Doutor em Educação pela Universidade Federal de Alagoas, Professor do Magistério Superior da Universidade Federal de Alagoas, Líder do Grupo de Pesquisa em Educação, Ciências e Tecnologias Afro-Latino-Americanas (gp-ecitalas/ufal/cnpq), Campus Arapiraca, Universidade Federal de Alagoas, Arapiraca, Brasil, ivanderson.silva@arapiraca.ufal.br Universidade Federal de Alagoas Universidade Federal de Alagoas Arapiraca Brazil
Doutora em Educação pela Universidade Federal de Alagoas, Professora do Magistério Superior da Universidade Federal de Alagoas, Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Educação, Ciências e Tecnologias Afro-Latino-Americanas (gp-ecitalas/ufal/cnpq), Campus Arapiraca, Universidade Federal de Alagoas, Arapiraca, Brasil, maria.brito@arapiraca.ufal.br Universidade Federal de Alagoas Universidade Federal de Alagoas Arapiraca Brazil

suzi24soso@gmail.com

Resumo

Este estudo, desenvolvido em nível de mestrado, investigou possibilidades teórico-metodológicas para a exploração do jogo Awelé, da família Mancala —grupo de jogos de matriz asiático-africana cujo fundamento é a semeadura e a colheita— no contexto de práticas pedagógicas focadas num ensino de matemática antirracista. Teve por objetivo central explorar o jogo Awelé com vistas ao desenvolvimento de uma Sequência Didática. Trata-se de uma pesquisa participante que foi realizada junto a uma turma de 21 estudantes que cursavam a disciplina “Saberes e Metodologias do Ensino de Matemática 2”, durante o primeiro semestre letivo de 2021, no Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Alagoas, Campus Arapiraca. O extrato dessas análises permitiu a apresentação de uma proposta de ensino que pode ser realizada tanto com estudantes de cursos de formação docente quanto em turmas dos anos iniciais do Ensino Fundamental, e que enfoca a reflexão sobre a necessidade de subversão da ordem dos jogos de tabuleiro e jogos digitais que apontam ganhadores/as e perdedores/as. A partilha de conhecimentos que se dá em função da retirada desse jogo do abismo do esquecimento no qual o racismo e o colonialismo o arremessaram, possibilita pensar lutas em favor de uma outra sociedade.

Palavras-chave:

Mancala, jogo awelé, ensino de matemática, racismo, colonialismo.

Resumen

Este estudio, desarrollado a nivel de maestría, investigó posibilidades teórico-metodológicas para la exploración del juego Awelé, de la familia Mancala —grupo de juegos asiático-africanos basados en la siembra y la cosecha—, en el contexto de prácticas pedagógicas enfocadas en la enseñanza de las matemáticas antirracistas. Su objetivo central fue explorar el juego Awelé con miras a desarrollar una Secuencia Didáctica. Se trata de una investigación participativa que se realizó con un grupo de 21 estudiantes que cursaban la asignatura “Conocimientos y Metodologías de Enseñanza de las Matemáticas 2”, durante el primer semestre de 2021, en el Curso de Pedagogía de la Universidad Federal de Alagoas, Campus Arapiraca. El extracto de estos análisis permitió presentar una propuesta didáctica que puede realizarse tanto con estudiantes de cursos de formación docente como en clases de los primeros años de la enseñanza primaria, y que se centra en la reflexión sobre la necesidad de subvertir el orden de los juegos de mesa y juegos digitales que señalan ganadores y perdedores. El intercambio de saberes que se produce a partir de la retirada de este juego del abismo del olvido al que lo arrojaron el racismo y el colonialismo, posibilita pensar las luchas a favor de otra sociedad.

Palabras clave:

Mancala, juego awelé, enseñanza de las matemáticas, racismo, colonialismo.

Abstract

This study, developed at the master’s level, investigated theoretical-methodological possibilities for exploring the Awelé game, part of the Mancala family —a group of Asian-African games based on sowing and harvesting—, in the context of pedagogical practices focused on teaching anti-racist mathematics. Its central objective was to explore the Awelé game with a view to developing a Didactic Sequence. This is a participatory research conducted with a group of 21 students who were taking the subject “Knowledge and Methodologies of Teaching Mathematics 2”, during the first semester of 2021, in the Pedagogy Course at the Federal University of Alagoas, Campus Arapiraca. The extract from these analyses allowed the presentation of a teaching proposal that can be applied both to students of teacher training courses and in classes in the early years of Elementary School, and that focuses on the reflection on the need to subvert the order of board games and digital games that point out winners and losers. The sharing of knowledge that takes place due to the withdrawal of this game from the abyss of oblivion into which racism and colonialism threw it, makes it possible to think about struggles in favor of another society.

Keywords:

Mancala, Awelé game, mathematics teaching, racism, colonialism.

Introdução

Neste estudo, partimos da premissa de que “a escola e o currículo que nela se concretizam são frutos de uma sociedade racista” (Benite, Camargo & Amauro, 2020, p. 14). Recusamos a ideia simplista de que o racismo se reduz a atos individuais de sujeitos contra sujeitos. Para Camargo e Benite (2020), p. 42, “o racismo é um sistema organizado, intrincado, abrangente e atuante em todas as pessoas e em todos os três níveis da vida social: pessoal, interpessoal e institucional”. Além disso, “o racismo sistêmico operacionaliza-se incitando, adequando e estruturando o Estado e suas instituições assim como a iniciativa privada, de modo a manter as coisas como estão no que tange à ordenação social” (Camargo & Benite, 2020, p. 42).

Neste sentido, o racismo é sistêmico e estrutural. De acordo com Almeida (2021), o racismo estrutural não é um novo tipo de racismo. Para esse autor, “o racismo é sempre estrutural, ou seja, ele é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade. (...) não um fenômeno patológico ou que expressa algum tipo de anormalidade” (p. 20). Todas as demais formas de classificar o racismo são apenas modos, ângulos através dos quais se observa o fenômeno. Uma dessas formas de expressão, pode ser observado no campo da Matemática, no que diz respeito aos esforços de branqueamento da autoria do Teorema do Triângulo retângulo.

De acordo com Silva e Farias (2020), p. 131 “as mais antigas referências gregas à história da matemática, que não sobreviveram, atribuem a Tales e a Pitágoras um bom número de descobertas matemáticas definidas”. Contudo, essas atribuições se baseiam em tradições persistentes e não em documentos históricos. Segundo Silva (2018), p. 58, “esta relação foi utilizada amplamente por africanos, hindus, babilônios e chineses muito antes do nascimento de Pitágoras”. Para Pinheiro (2021), Pitágoras foi um grego que nasceu no ano de 571 a.C. e, de fato, viveu cerca de 20 anos em Alexandria; lá ele aprendeu vários conhecimentos que circulavam naquela sociedade, inclusive o Teorema do Triangulo Retângulo descrito no papiro de Ahmes, “data do de 1650 a.C.” (Pinheiro, 2021, p, 54-55).

Com efeito, nem todos os espólios subjetivos africanos se mantiveram sob os holofotes ocidentais, como é o caso do Teorema do Triângulo Retângulo. Algumas das produções africanas que foram colonizadas, por não servirem ao modelo de sociedade que foi desenhado na modernidade, foram relegadas ao apagamento histórico. Esse é o caso, por exemplo, do jogo Awelé, da família Mancala.

Os jogos da família Mancala são considerados um dos mais antigos do mundo. De acordo com Zuin e Sant’Ana, ao se tratar dos jogos da família Mancala, “não há um consenso sobre a sua gênese; enquanto alguns apontam seu nascimento por volta de 2.000 a.C., há relatos que indicam que esse jogo existe na África há, aproximadamente, 7.000 anos, sendo considerado o primogênito de todos os jogos de tabuleiro” (2015, p. 10). Pinheiro enfatiza que “Mancala é um nome amplo dado a muitos jogos matemáticos de raciocínio lógico cultivado no continente africano, que guardam entre si diversas semelhanças” (2021, p. 7). Os jogos de Mancala, quando utilizados na escola como um recurso pedagógico, podem favorecer o ensino-aprendizagem de conceitos matemáticos a partir de referenciais afrocentrados e cosmovisões africanas ancestrais.

O grupo de jogos da família Mancala representa a cultura, a crença, a ancestralidade e a sabedoria dos povos africanos. Porém, ao serem colonizados, foram transformados e reduzidos a mercadorias. Nesse processo, a essência do jogo, que consistia na semeadura e na partilha da colheita, se desfaz. Na forma de mercadoria, não se joga com, se joga contra. Trata-se de um ensaio para uma guerra. Aquele/a com quem se joga, o/a outro/a, é sempre um/uma o/a inimigo/a, um/uma adversário/a, que, por isso, precisa ser derrotado/a, aniquilado/a (Mbembe, 2018)

Dentre os jogos da família Mancala, destacamos um dos mais simples: o jogo Awelé. No contexto do ensino formal, é possível considerar que o jogo Awelé da família Mancala pode ser jogado em qualquer etapa da Educação Básica ou do Nível Superior. O jogo possibilita abordar conteúdos matemáticos a partir de cosmovisões alternativas àquelas cujas lentes são as de uma história única e eurocentrada. Dessa maneira, surgiu o interesse em organizar uma Sequência Didática que instigue os/as professores/as a construírem conhecimentos no que concerne à Educação Matemática para as Relações Étnico-raciais, contextualizar as histórias dos/as sujeitos/as que estão inseridos/as na escola e difundir as ciências e tecnologias africanas e afro-diaspóricas.

Em face do potencial didático deste jogo, delineamos a seguinte questão de pesquisa: “Que possibilidades teórico-metodológicas para a exploração do jogo Awelé emergem quando nos voltamos para o desenvolvimento de práticas pedagógicas focadas num ensino de matemática antirracista?” Para esta pesquisa, objetivamos, de modo geral, investigar o jogo Awelé com vistas ao desenvolvimento de uma Sequência Didática que mobilize saberes matemáticos e que tenha como foco o desenvolvimento de práticas pedagógicas antirracistas.

De modo específico, este estudo teve como objetivos: compreender os movimentos do jogo Awelé e suas relações com a exploração de conceitos matemáticos; explorar as possibilidades de desenvolvimento de propostas didáticas a partir do jogo Awelé; analisar os limites e as potencialidades didáticas dos diferentes formatos em que se apresentam os jogos Awelé, com foco na construção de práticas decoloniais de ensino de matemática. Para dar conta desses intentos, foi realizada uma Pesquisa Participante, entre outubro e dezembro de 2021, com as 21 estudantes que cursavam a disciplina “Saberes e Metodologias do Ensino de Matemática 2”, ofertada no 5º período do curso de Pedagogia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Campus Arapiraca/AL. A carga horária semanal é de 3h, distribuídas em torno de 15 semanas letivas (Universidade Federal de Alagoas, 2018).

Segundo Faerman (2014), a Pesquisa Participante está ancorada na abordagem qualitativa, e “direciona-se para a realidade social dos sujeitos, suas experiências, sua cultura e seus modos de vida. Logo, prevê uma aproximação horizontal entre sujeito e objeto, tendo em vista que ambos são da mesma natureza” (p. 44). Diante desse ponto de vista metodológico, discorreremos acerca das regras do jogo Awelé. Na sequência, descreveremos como aconteceram o momento de ambientação, de intervenção e de criação das condições de captação dos limites e das contribuições do jogo Awelé para o ensino de matemática. Por fim, tecemos algumas considerações acerca das análises desenvolvidas.

Fundamentação da experiência

O jogo Awelé é jogado por duas pessoas. O tabuleiro pode assumir diversos formatos e pode ser construído a partir de diferentes materiais, inclusive no chão de areia. Esse tabuleiro, comumente, se configura com duas fileiras paralelas. Cada fileira contém seis covas, cavas, ou escavações em baixo relevo, todas elas aproximadamente de mesmo tamanho, alinhadas uma a outra. Do lado diametralmente oposto, dada uma pequena distância, é disposta outra fileira com covas, cavas ou escavações em baixo relevo simétricas à fileira retracitada. Nas posições laterais, nos extremos do tabuleiro, entre o espaço criado pelas duas fileiras de cavas, são dispostas duas covas, cavas, ou escavações em baixo relevo maiores, nomeadas como kahlas. Para ilustrar esse modelo de tabuleiro, dispomos a Figura 1.

Ilustração do tabuleiro do jogo Awelé

Figura 1: Ilustração do tabuleiro do jogo Awelé

Fonte: elaborado pelos autores (2023)

Conforme descrito anteriormente, a partir da ilustração da Figura 1, é possível identificar o paralelismo, a simetria e o alinhamento entre as cavas (círculos menores). Do mesmo modo, é possível perceber que, nos extremos do tabuleiro, no espaço entre as cavas, estão localizadas as kalahs (covas maiores). A ideia de tamanho, de proporção, de paralelismo, de simetria, de profundidade de cada cava ou kalah, e de quantidade são conceitos mobilizados tão somente ao elaborar o tabu leiro, ainda que da forma mais simples. Com efeito, a criatividade pode contribuir para a elaboração de tabuleiros mais sofisticados e que envolvam outros conceitos matemáticos.

Ao passo que o tabuleiro já foi preparado, cada jogador/a recebe 24 sementes e assume um dos lados das cavas. As jogadas devem acontecer sempre no sentido anti-horário. Em cada uma das cavas são colocadas 4 sementes (total de 48 sementes a serem distribuídas nas 12 cavas). As duas cavas maiores (kalah), não recebem sementes no início do jogo. Essas só são utilizadas após os movimentos de jogada. Cada jogador terá uma kalah para depositar as sementes que conseguir capturar. A kalah de cada joga dor/a é a que está à sua direita.

Cada fila de seis cavas é o território do/a jogador/a mais próximo a ela. Ao iniciar o jogo, o/a jogador/a da vez escolhe uma cava dentre aquelas que estão em sua fileira, pega todas as sementes que estão dentro desta cava e as distribui, uma por uma, em cada uma das cavas subsequentes, incluindo a sua kalah. Essa é a regra principal do jogo: a distribuição das suas sementes. Aqui, trabalhamos a divisão, a partilha, o compartilhamento. Isso implica, por exemplo, caso a cava que o joga dor 2 escolha seja a cava mais à sua direita (vizinha de sua kalah), que todas as sementes que estiverem nesta cava serão distribuídas, uma na kalah do jogador 2, e as demais nas cavas do jogador 1, uma vez que o jogo se dá no sentido anti-horário. A exceção a esse movimento é a distribuição na kalah da pessoa com que se está jogando. Esse movimento pode ser visualizado a partir da ilustração da Figura 2, considerando o primeiro movimento do jogo no qual todas as cavas estavam com o mesmo número de sementes, ou seja, com quatro sementes.

Primeiro movimento do jogo Awelé

Figura 2: Primeiro movimento do jogo Awelé

Fonte: elaborado pelos autores (2023)

Conforme a ilustração da Figura 2, quando o/a jogador/a passar pelo seu kalah, deposita-se uma semente e continua-se distribuindo nas cavas do/a companheiro/a de jogo, mas não pode colocar semente no kalah dele/a. Ao assumir que o segundo movimento do jogo foi, naturalmente, realizado pelo jogador 1, e que o movimento dele/a foi idêntico ao realizado pelo jogador 2, perceberemos que a distribuição de sementes será a ilustrada na Figura 3.

Segundo movimento do jogo Awelé

Figura 3: Segundo movimento do jogo Awelé

Fonte: elaborado pelos autores (2023)

Neste caso, ao observarmos a Figura 3, perceberemos que não há distinção simétrica no tabuleiro. Contudo, assumamos que numa terceira jogada, o jogador 2 escolha distribuir as sementes da segunda cava da sua fileira, no sentido da esquerda para a direita (anti-horário). Neste caso, teremos uma nova regra. Essa nova distribuição está ilustrada na Figura 4.

Terceiro movimento do jogo Awelé

Figura 4: Terceiro movimento do jogo Awelé

Fonte: elaborado pelos autores (2023)

Neste caso, a última semente distribuída pelo/a jogador/a 2 foi depositada em sua kalah. Quando isso acontece, o/a jogador/a 2 deve jogar mais uma vez.

Ao longo do jogo, pode ocorrer a seguinte situação: suponhamos que o jogador 1 decidiu distribuir as sementes da cava mais à sua esquerda (circulada de branco) (Figura 5). Ao distribuir cada uma das sementes, o jogador 2 finalizou a distribuição numa cava vazia de sua fileira. Quando isso ocorre, o jogador 1 deve capturar as sementes da cava oposta à sua e que está localizada na fileira do jogador 2. Neste caso, o jogador deve capturar todas as sementes da cava oposta àquela na qual a última semente foi distribuída. Esses movimentos podem ser visualizados na Figura 5.

Quarto movimento do jogo Awelé

Figura 5: Quarto movimento do jogo Awelé

Fonte: elaborado pelos autores (2023)

Desta forma, o jogador 1 conseguiu acumular mais sementes em sua kalah. O jogo termina quando um/a dos/as semeadores/as não tiver mais sementes para distribuir. Dentro de uma lógica competitiva, ganha quem possuir, ao final, mais sementes em sua kalah. Com efeito, se a ideia do jogo é fomentar concepções radicalmente antirracistas, ao compreendermos que o racismo é estruturado e estruturante do capitalismo (Almeida, 2020), devemos assumir que a ideia do jogo também é fomentar concepções anticapitalistas. Desta forma, dentro de uma proposta de ensino de matemática decolonial, antirracista, é imprescindível exercitar a contestação da lógica da competição neste jogo. Em lugar da lógica da disputa, estimula-se a lógica da partilha. Deste modo, não se joga contra, mas se joga com o/a outro/a.

Ao compreendermos os movimentos do jogo e seus fundamentos antirracistas, decidimos explorá-lo junto a estudantes do Curso de Pedagogia. Acerca da etapa de exploração do jogo, discorreremos na próxima seção.

Descrição da experiência

Os encontros da disciplina “Saberes e Metodologias do Ensino de Matemática 2” aconteceram no primeiro semestre letivo de 2021 (2021.1). Mas, em função da distorção entre o calendário civil e o calendário letivo da universidade, esses encontros ocorreram no final do ano civil de 2021, no contexto do Ensino Remoto Emergencial, modalidade experimentada em função do isolamento social necessário à preservação de vidas no contexto da Pandemia da covid-19.

Assim, é preciso registrar que do ponto de vista da percepção da realidade

dos/das sujeitos/as pesquisados/as, bem como do ponto de vista de como esses/as sujeitos/as percebiam os/as pesquisadores/as, a própria lógica do ensino remoto faz com que, nos encontros síncronos que ocorriam às sextas-feiras à noite, via Google Meet, das 19h às 22h, todos/as os/as componentes desta turma estivessem uns/umas nas casas dos/das outros/as. A intimidade do lar de cada um/a que participou da experiência do ensino remoto esteve profundamente fragilizada.

O grau de intimidade com que nos relacionamos fez com que conhecêssemos as pessoas com quem os/as pesquisadores/as e as sujeitas pesquisadas moravam, bem como suas vizinhanças. Fez com que fossem explicitadas as dificuldades de algumas participantes da pesquisa em interagir com a turma em função de ruídos externos (caixa de som, televisão alta, etc.), sobretudo porque a aula era na sexta-feira à noite.

Muitas das estudantes dessa turma também não abriram a câmera do smartphone ou do computador durante todo o período em que estivemos realizando a Pesquisa Participante, salvo para direcionar a câmera exatamente para os trabalhos que tinham que ser apresentados. Se por um lado, as estudantes quase nunca abriam a câmera, por outro lado, sempre que podiam, abriam o microfone e participavam ativamente dos momentos de exposição dialogada, perguntavam quando tinham dúvida e aparentavam manter uma ótima relação entre elas e também para com o professor responsável.

As aulas da sexta-feira, apesar de acumularem o cansaço da semana inteira

e de terem duração de 3h sem intervalos, transcorriam muito rapidamente. A

sensação sempre era de que poderíamos ficar muito mais tempo ali dialogando sobre recursos didáticos, possibilidades de uso, saberes matemáticos e estratégias didáticas.

O professor da disciplina informou que tinha atuado por sete anos no contexto da Educação Básica. Contudo, uma vez que sua formação inicial era em Física Licenciatura, esse professor havia atuado neste nível de ensino somente no Nível Médio e não tinha experiência de sala de aula no contexto dos anos iniciais do Ensino Fundamental.

As estudantes da turma não tinham experiência profissional no campo da Educação. Do ponto de vista das atividades de Estágio e de Extensão, oferecidas pela Universidade, a Pandemia da covid-19 impediu que essa turma tivesse a oportunidade de viver o ambiente da escola na perspectiva da profissionalização. Com efeito, uma estudante, subvertendo às expectativas, revelou experiências singulares. Ela era intérprete da Língua Brasileira de Sinais (libras) e dava aulas de reforço a uma criança surda que morava próximo àsua casa.

Neste sentido, inicialmente, em diálogo com o professor responsável pela disciplina, acordamos que faríamos um momento de ambientação para que a turma se sentisse à vontade com nossa presença e para que pudéssemos captar os movimentos das estudantes e do professor, ou seja, as práticas sociais que eram próprias daquela sala de aula.

Assim, os primeiros quatro encontros, realizados entre novembro e dezembro de 2021, se constituíram em momentos de ambientação, nos quais buscamos nos aproximar das estudantes e assim nos integrar à turma. Essa integração era imprescindível para que pudéssemos fazê-las se sentir à vontade para vivenciar práticas com o jogo Awelé e expressar com a maior franqueza possível suas percepções acerca das limitações e das contribuições didáticas desse jogo.

Como se tratava de uma etapa da pesquisa de campo e uma pesquisa com seres humanos, o primeiro movimento ao acessar à turma foi o de solicitar a cada uma das participantes a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Caso alguma estudante, ou o professor, não concordasse com algum dos itens do TCLE, a pesquisa seria abortada na turma e procuraríamos outro lócus para realizá-la. Um dos critérios de escolha para o desenvolvimento das atividades de pesquisa nesta turma foi o acesso ao professor, à coordenação do curso e à gestão da universidade, mas o fator determinante para a realização da pesquisa especificamente nesta turma foi a concordância de todas as integrantes com os termos do TCLE.

Ao concordarem com os termos, informamos que se tratava de uma pesquisa em nível de Mestrado. No processo de Pesquisa Participante, estaríamos em parceria com todas, dialogando em busca de produzir in terlocuções teórico-práticas a partir de nossas experiências com o ensino de matemática nos anos inicias e sobretudo a partir do uso do jogo Awelé. Para isso, a equipe de pesquisadores estaria participando das aulas, faria observações das atividades, interagiria nos encontros, apresentaria a proposta de ensino e nesta, cada uma das estudantes poderia expressar o que percebiam enquanto limitações e enquanto contribuições da proposta para o ensino de matemática. A partir deste momento, passamos a frequentar os encontros da disciplina. Os quatro primeiros encontros com a turma se constituíram em momentos de ambientação e estreitamento de relações entre os pesquisadores e as alunas.

A partir do momento de ambientação, conseguimos nos integrar à turma. Ganhamos a confiança das estudantes e também nos sentimos à vontade para dialogar com elas sobre o epistemicídio perpetrado contra os povos africanos, sobretudo aquele que arremessou o jogo Awelé no esquecimento. Segundo Pinheiro (2021), o epistemicídio diz respeito a um genocídio epistêmico. O epistemicídio envidado contra o jogo Awelé diz respeito a um racismo estrutural que implica no apagamento, na negação da intelectualidade e na sublimação da potência científico-cultural do povo negro. Trata-se de um modo de expressão do racismo estrutural.

Através dos diálogos construídos nesses quatro primeiros encontros nos aproximamos das estudantes e conseguimos captar a realidade social das sujeitas que ali estavam envolvidas, registrar suas experiências e apreender a cultura emergente das práticas sociais que se manifestavam naqueles encontros da sexta-feira à noite. Com efeito, chegava o momento de assumir, junto com o professor, a posição docente naquela turma. Essa passagem não poderia comprometer a relação horizontal que havíamos construído com as estudantes. Assim, dentro da abordagem da Pesquisa Participante, não nos colocaríamos como “os/as professores/as”, ou como “aqueles/as que detém o conhecimento”. Optamos por tratá-las como colegas que poderiam contribuir conosco em nossa busca por aprofundamento teórico-metodológico. Para isso, apresentamos uma proposta de ensino em quatro etapas. Acerca dessas etapas, discutiremos a seguir.

Sistematização e análise da experiência

Os movimentos de ação e reflexão se deram no decurso de quatro etapas. Foram elas: 1ª Etapa: origens, lógica e regras do jogo Awelé; 2ª Etapa: construindo um tabuleiro para o jogo awelé; 3ª Etapa: compreendendo regras, estratégias e jogando com os pares o jogo Awelé; 4ª Etapa: reflexões acerca de problemas matemáticos a partir das regras e estratégias do jogo Awelé. Acerca da implementação dessas etapas, discorreremos a seguir.

a) Encontro 5 - 1ª Etapa: origens, lógica e regras do jogo Awelé

Após a conclusão dos momentos de ambientação, passamos à primeira etapa da implementação da Sequência Didática. Elaboramos uma apresentação de slides na qual exploramos as origens ancestrais africanas do jogo, a lógica anticapitalista que em suas origens o jogo possuía, e nos dedicamos a tecer

orientações acerca das regras do jogo.

Como estávamos no cenário do Ensino Remoto Emergencial, sugerimos que

as estudantes fizessem o download do jogo Awelé a partir das lojas de aplicativos disponíveis nos smartphones delas. Todas as estudantes da turma possuíam smartphones. Sugerimos que buscassem pelo descritor “Mancala”. Algumas das capturas de tela desses jogos, que foram utilizados nesta experiência, podem ser visualizadas na Figura 6.

Interfaces dos jogos Awelé digitais para fazer download nos smartphones

Figura 6: Interfaces dos jogos Awelé digitais para fazer download nos smartphones

Fonte: arquivos da pesquisa (2023)

Também sugerimos que procurassem, a partir de buscadores disponíveis na internet (Como Yahoo, Google, etc.), nos browsers (navegadores como Google Chrome, Mozilla Firefox, Internet Explorer, etc.), jogos Awelé que pudessem ser jogados online, sem a necessidade de fazer download. Dentre os jogos que foram explorados, uma das estudantes enviou a captura de tela daquele que ela mais gostou. A imagem desse jogo está disponível na Figura 7.

Interface do jogo Awelé digital para jogar online a partir do navegador

Figura 7: Interface do jogo Awelé digital para jogar online a partir do navegador

Fonte: arquivos da pesquisa (2023)

Todas as estudantes fizeram o download, a maioria explorou jogos online e muitas delas exploraram mais de um aplicativo. Com isso, a explicação das regras do jogo ficou mais fácil. Contudo, observamos que, diferente da concepção anticapitalista, arrazoado da modernidade, que fundamenta o jogo Awelé, na qual não se joga contra, se joga com, no contexto dos jogos Awelé digitais, essa concepção não se mantém. Ao jogar no aplicativo com o smartphone, ou no navegador da internet, ao final da partida, se o aplicativo tivesse capturado mais sementes, aparecia na tela final do jogo para o/a jogador/a a mensagem “you lost”, “try one more time”, ou frases do tipo.

Caso a jogadora, ao final do jogo, tivesse capturado mais sementes que o aplicativo com o smartphone, ou no navegador da internet, então aparecia a mensagem “congratulations”, ou algo do gênero. Neste ponto percebemos dois aspectos: o primeiro era que, no contexto dos jogos Awelé digitais, havia, necessariamente, um/a ganhador/a e havia um/a perdedor/a; e que, à época, não conseguimos encontrar nenhum jogo traduzido para o português.

Ou seja, o jogo Awelé que jogamos nos smartphones era, em sua essência, radicalmente divergente do jogo Awelé que havíamos exposto nos slides. Tratava-se ali de um jogo dentro da lógica colonialista e que operava dentro da ordem do capitalismo, que coloca uns/umas contra os/as outros/as, que estabelece uma disputa na qual só há espaço para um/a vencedor/a, na qual é preciso eliminar o/a inimigo/a para poder vencer (Mbembe, 2018).

Ao final deste encontro, solicitamos que as estudantes explorassem mais o jogo digital para se apropriarem melhor das regras e estratégias, mas também solicitamos que pesquisassem sobre a construção de tabuleiros do jogo Awelé, da família Mancala. Assim, além de explorarem mais o jogo digital, solicitamos que compusessem novamente grupos de cinco componentes e, coletivamente, construíssem um tabuleiro físico para o jogo Awelé.

b) Encontro 6 - 2ª Etapa: construindo um tabuleiro para o jogo Awelé

Neste encontro, solicitamos que os grupos relatassem, um a um, como pensaram na elaboração dos tabuleiros, que materiais utilizaram, que fontes de pesquisa acessaram, quais as dificuldades que tiveram e que, por fim, apresentassem o tabuleiro que foi produzido por cada uma. Em resposta às provocações, as estudantes informaram que encontraram muitas dificuldades em localizar informações consistentes sobre a elaboração de tabuleiros Awelé e mesmo acerca da existência desse jogo.

Havia muita divergência entre os sites que foram acessados. Cada um apresentava modelos diferentes de jogos e com materiais muito variados. Isso

acabou confundindo as estudantes, mas ao mesmo tempo fez com que elas tomassem a consciência de que estavam diante de algo novo, embora sua origem cronológica, paradoxalmente, sinalizasse que se tratava de um dos jogos mais antigos da humanidade.

c) Encontro 7 - 3ª Etapa: compreendendo regras, estratégias e jogando com os pares o jogo Awelé

Neste encontro, desafiamos as estudantes a jogarem durante a aula o jogo digital, no entanto, uma com a outra e não mais com o aplicativo ou navegador da internet. Nesta oportunidade, as estudantes comentaram que os jogos digitais, comumente, ofereciam três possibilidades: jogar contra o próprio aplicativo (offline), jogar contra algum/a outro/a jogador/a que também estivesse acessando o mesmo aplicativo no mesmo momento que ela (online), ou jogar contra o computador/ smartphone em aplicativos online que não precisassem fazer download.

Nesse cenário, as estudantes relataram muita dificuldade em encontrar alguém que também estivesse online no aplicativo para poderem jogar contra outra pessoa e não contra uma máquina. Relataram também que, no jogo contra a máquina, elas podiam regular os níveis de dificuldade com que a máquina iria jogar contra elas.

Duas estudantes relataram que conseguiram jogar com pessoas de sua família e que essas pessoas gostaram muito do jogo. Outras três relataram que construíram o tabuleiro e que jogaram o jogo, duas com as primas e outra com a filha. Em ambos os casos, tanto as primas, quanto a filha, adoraram o jogo físico. A Figura 8 ilustra alguns dos tabuleiros dos jogos da família Mancala que foram produzidos pelas estudantes, inclusive tabuleiros que, embora sejam da família Mancala, não são Awelé (Fig. 8 d).

Tabuleiros de mancala produzidos pelas estudantes

Figura 8: Tabuleiros de mancala produzidos pelas estudantes

Fonte: arquivos da pesquisa (2023).

Observa-se, a partir das imagens, que as estudantes utilizaram os mais variados recursos para produzir os tabuleiros. Utilizaram cartolina colorida, gesso e areia colorida, EVA (material emborrachado), papelão, fitas adesivas coloridas e tampinhas de garrafa pet, e caixas de ovos com copinhos descartáveis de plástico. As peças do jogo foram as sementes mais diversas. Observamos que houve grande empolgação na socialização dos tabuleiros e na narrativa de como exploraram esses tabuleiros com seus familiares.

De acordo com Campelo, Barbosa e Ribeiro (2019, p. 7), “os jogos de Mancala são classificados segundo o número de fileiras formadas pelas cavidades. Os mais difundidos são os de duas fileiras conhecido como Mancala 2 (de grau 2)”. O jogo Awelé é um jogo de duas fileiras, ou seja, Mancala 2. Com efeito, percebemos que uma das estudantes elaborou um tabuleiro de Mancala triangular (Fig. 8 d), que não era esperado para essa atividade, mas não havíamos interditado sua produção. Isso sinaliza para as múltiplas possibilidades de tabuleiros, de jogos, regras e estratégias que os jogos da família Mancala apresentam.

d) Encontro 8 - 4ª Etapa: reflexões acerca de problemas matemáticos a partir das regras e estratégias do jogo Awelé

Em continuidade, passamos ao último encontro realizado por ocasião da Pesquisa Participante. Nesta oportunidade, produzimos reflexões acerca de problemas matemáticos, sobre as regras do jogo Awelé, bem como sobre as estratégias que utilizaram na exploração tanto do jogo digital quanto do tabuleiro do jogo físico.

Tais reflexões foram fomentadas no contexto de uma roda de conversas que

realizamos junto com as estudantes. Nessas reflexões, resgatamos as origens africanas deste jogo; apontamos que esse destaque na abordagem didática é fundamental para tensionar a narrativa do currículo oficial que é hegemonicamente branca e masculina; situamos essa sequência didática como um esforço para a construção de alternativas de ensino de matemática numa perspectiva antirracista. Além disso, também discutimos sobre conceitos matemáticos que poderiam ser explorados a partir desse jogo e em quais componentes curriculares seus usos poderiam ser feitos.

A partir desse debate, consensuamos que seria possível explorar conceitos

do campo da Língua Portuguesa (por que falamos português no Brasil?), da Matemática (como resolver problemas de adição, subtração, multiplicação, divisão, a partir das jogadas no tabuleiro Awelé?), da Geografia (que nomes recebem os tabuleiros de Mancala e que tipos de jogos de Mancala são encontrados emcada região do globo terrestre?), da História (que movimentos históricos fizeram com que, no Brasil, os jogos da família Mancala fossem arremessados no esquecimento?), das Ciências da Natureza (qual o impacto do lixo, sobretudo do lixo plástico que é descartado por nós - mas que podemos reciclar - em biomas como o mar, os mangues, as florestas, etc.?), nas Artes Plásticas (como produzir tabuleiros de Mancala com cores quentes, frias, com papel machê, com dobraduras, etc.?), no Ensino Religioso (em suas origens, os jogos de Mancala desempenhavam algum papel religioso? Em caso afirmativo, que papéis eram esses? Para quais povos?), na Filosofia (quais as relações entre racismo e os jogos de Mancala?), na Sociologia (o que é o capitalismo e em quais aspectos os jogos de Mancala têm de se adaptar para sobreviver neste modo de produção?), etc.

A experiência com os tabuleiros físicos e os tabuleiros digitais nos permitiu novos olhares acerca dos limites e das contribuições do jogo Awelé para o ensino de matemática no contexto dos anos iniciais do Ensino Fundamental.

Considerações finais

Evidenciamos, a partir da Pesquisa Participante que, no contexto da educação mediada por interfaces da internet, é possível utilizar o jogo Awelé digital, seja a partir de dispositivos móveis como o smartphone ou a partir de computadores de mesa. É possível dispor de aplicativos que, uma vez feito o download, não exigem conexão com a internet e permitem ser transportados de um aparelho para o outro a partir de um dispositivo de mídia como pen-drive. É possível ainda jogar o Awelé remotamente com outros/as jogadores/as caso haja conexão com a internet e caso haja algum/a outro/a jogador/a conectado/a ao jogo digital naquele momento com interesse em realizar uma partida síncrona e remota.

Para que as práticas com o jogo Awelé digital possam ser realizadas, é imprescindível que uma primeira condição seja atendida: a condição material. Ou seja, para fazer uso dos jogos digitais é preciso que os/as estudantes tenham acesso a smartphones, tablets, note books, ou computadores do tipo desktop. Para que possam fazer o download, utilizar os jogos digitais e realizar partidas remotamente com outros/as jogadores/as, é preciso também, além de dispor dos suportes tecnológicos, dispor de boa conexão com a internet.

Ainda sobre os jogos Awelé digitais, observa-se que é necessário dialogar com seus desenvolvedores, ou com as instituições de pesquisa, no sentido de produzir jogos Awelé digitais nos quais os/as diferentes jogadores/ as não sejam colocados/as numa arena de disputas, na qual um/a joga contra o/a outro/a. A lógica da semeadura, do cultivo, da colheita e, sobretudo, da partilha, se perde no contexto dos jogos digitais que tivemos acesso, uma vez que esses reproduzem a lógica da competição, própria da sociedade capitalista e, portanto, a lógica da modernidade europeia.

Com efeito, é preciso recordar que foram feitas muitas buscas por aplicativos em português e que rejeitassem a lógica da competição, na qual o desafio era capturar o máximo de sementes do tabuleiro para que o/a outro/a jogador/a não ficasse com nenhuma ou que ficasse com o mínimo possível. Se na vida, um/a único/a sujeito/a captura para si todas ou quase todas as sementes, isso inevitavel mente faz com que os/as demais sujeitos/as que não conseguiram a mesma proeza tenham de dividir as migalhas que o/a ganhador/a não conseguiu capturar.

A produção de tabuleiros de Mancala, notadamente tabuleiros para o jogo Awelé, a partir de recursos recicláveis, como é o caso de papelão, caixas de ovos, potes de iogurte, garrafas pet, dentre outros recursos, pode contribuir para o desenvolvimento de práticas interdisciplinares para as quais confluem temas diversos, dentre os quais aqueles do campo da Educação Ambiental e de uma Educação Matemática antirracista.

Os/As estudantes podem ser desafiados/as e orientados/as a um trabalho

de pesquisa em sites confiáveis da internet, ou livros que tratem do tema, para se aprofundarem no assunto. Podem produzir uma mostra cultural a partir dos saberes que apreenderam e dos tabuleiros que produziram. A valorização dos saberes ancestrais do povo negro pode contribuir para a valorização do potencial intelectual e artístico das crianças ao serem autoras de seus tabuleiros de Mancala. Esses tabuleiros podem ser levados para casa e serem jogados com seus familiares, amigos/as ou responsáveis, o que denota uma abordagem coletiva quanto à construção de saberes, se opondo ao individualismo tão presente na educação formal.

Ao longo dos encontros, percebemos que os debates desenvolvidos se constituíram, para além de espaços de formação, também espaços de resistência à uma pedagogia colonial. Ali partilhamos muito mais que conhecimentos ancestrais e saberes matemáticos. Aqueles encontros permitiram criar uma rede de apoio e nos divertir nas noites de sexta-feira, no fim do ano civil de 2021. Sobreviver à covid-19 e à toda a pressão psicossocial decorrente daquele momento histórico é uma demonstração de resistência às tentativas de esvanecimento de vidas subalternizadas. Desenvolver estratégias de ensino de matemática que desafiem a lógica racista, própria desta sociedade capitalista, é desenvolver formas de resistir e existir de forma humana.

No contexto dessas resistências, subvertemos a ordem dos jogos digitais que

apontavam ganhadores/as e perdedores/as e também tivemos a oportunidade de perceber que as participantes da pesquisa conseguiram apreender que o jogo Awelé, enquanto novidade, pode ser desafiador, mas, quando compreendido, sobretudo quando compreendidas as suas origens e regras, possibilita animar a casa na qual se está em isolamento social, seja pelo empenho na produção dos tabuleiros, seja no uso dos tabuleiros com as pessoas com as quais se convive, seja pela partilha de conhecimentos que se dá em função da retirada desse jogo do abismo do esquecimento no qual o racismo e o colonialismo o arremessaram.

Como extrato possível de ser replicado ou aperfeiçoado em práticas de ensino de matemática, seja no contexto da formação inicial de professores, seja no contexto dos anos iniciais do Ensino Fundamental, apresentamos uma proposta de ensino, com foco no uso do jogo Awelé em práticas de ensino de matemática.

Compreendemos assim, que a formação inicial de professores/as é um espaço privilegiado para a mobilização de saberes relacionados à temática da Educação para as Relações Étnico-raciais. É nesse contexto que a reflexão sobre uma formação antirracista deve ser considerada ao desenvolver práticas antirracistas na escola e na universidade. É imprescindível observar se, com nossas ações, não estamos fortalecendo práticas centradas no racismo, no colonialismo e no epistemicídio. Se não estamos evidenciando os estereótipos, excluindo pessoas racializadas a partir de lentes que só conseguem enxergar a narrativa de uma história única, eurocêntrica, branca e masculina.

Ao socializar os resultados de nossas análises da experiência de implementação do jogo Awelé no contexto de um curso superior de formação docente, esperamos produzir um espalhamento do nosso engajamento com a luta antirracista e construir possibilidades de uma Pedagogia decolonial. Nossa expectativa é suscitar novas experiências de descolonização do currículo, tanto na Educação Básica, quanto no Ensino Superior.