Recibido: 3 de agosto de 2016; Aceptado: 5 de agosto de 2016
Aprendizagem escolar e formação de professores vinculados à reconstrução curricular na modalidade de situação de estudo
Aprendizaje escolar y formación de profesores articulados a la reconstrucción curricular en la modalidad de situación de estudio
School Learning and Teacher Training Linked to the Curricular Reconstruction in the Form of Study Situation
Resumo
Este texto nasce de reflexões críticas sobre ações e pesquisas relacionadas com a constituição docente e seu vínculo com práticas formativas vivenciadas na formação inicial e continuada de professores de ciências. O estudo tem como objetivo compreender questões relacionadas com aprendizagem escolar e suas implicações no desenvolvimento do pensamento humano, segundo a abordagem histórico-cultural referenciada por Vigotsky, Leontiev e Elkonin.
O processo é de caráter qualitativo e está focalizado na construção de sentidos e significados. Foram realizadas leituras rigorosas de publicações, relatos, dissertações, teses, diários de campo, documentos e outros registros produzidos no interior do grupo de pesquisa durante os últimos 25 anos, visando gerar compreensões sobre os processos de constituição docente, mediante relações entre a formação inicial y continuada de professores.
O ensaio expressa as compreensões sobre a aprendizagem escolar e os diversos estádios de desenvolvimento do pensamento humano. No texto são descritas algumas práticas formativas desenvolvidas com professores em formação inicial e continuada com relação à apropriação do conhecimento. Finalmente, criam-se sugestões para o trabalho docente e seu sentido, advertindo que a ruptura entre significado e sentido leva à alienação do trabalho, envolvendo o desvirtuando essa atividade.
Palavras chave:
Aprendizagem e desenvolvimento do pensamento, significados do trabalho docente, situação de estudo, currículo e formação de professores.Resumen
Este texto surge de reflexiones críticas sobre acciones e investigaciones relacionadas con la constitución docente y su articulación a prácticas formativas vivenciadas en la formación inicial y continuada de profesores de ciencias. El estudio tiene como objetivo comprender cuestiones referidas al aprendizaje escolar y sus implicaciones en el desarrollo del pensamiento humano, atendiendo al abordaje histórico-cultural referenciada por Vigotsky, Leontiev y Elkonin.
El proceso es de carácter cualitativo y se enfoca desde la construcción de sentidos y significados. Se realizan lecturas rigurosas de publicaciones, relatos, disertaciones, tesis, diarios de campo, documentos y otros registros producidos al interior del grupo de investigación durante los últimos 25 años, con el ánimo de generar comprensiones sobre los procesos de constitución docente, mediante relaciones entre la formación inicial y continuada de profesores.
El ensayo, expresa las comprensiones sobre el aprendizaje escolar y los diferentes estadios de desarrollo del pensamiento humano, en el trascurso del texto, se describen algunas prácticas formativas desarrolladas junto a profesores en formación inicial y continuada frente a la apropiación de sus conocimientos. Finalmente se desarrollan sugerencias, acerca del trabajo docente y su sentido, advirtiendo que, la ruptura entre significado y sentido, conlleva a la alineación de la labor, comprometiendo o desvirtuando dicha actividad.
Palabras clave:
Aprendizaje y desarrollo del pensamiento, significados del trabajo docente, situación de estudio, currículo y formación de profesores.Abstract
This text is the result of critical reflections about actions and research related to the training of teachers and its link to education practices experienced in the initial and continued training of science teachers. The study aims to understand issues related to school learning and how they affect the development of human thinking, based on the historical-cultural approach referenced by Vigotsky, Leontiev, and Elkonin.
The process is qualitative in nature and focuses on the development of sense and meaning. It conducts in-depth readings of publications, stories, dissertations, theses, field journals, documents and other records produced in the research group over the past 25 years, in order to generate an understanding about the teacher training processes through connections between the initial and continued training of teachers.
The paper expresses the understandings about school learning and the different stages of development of human thought. The text describes some training practices developed with teachers during their initial and continued training regarding their appropriation of knowledge. Finally, the paper makes suggestions about teaching work and its meaning, advising that the rupture between sense and meaning leads to the alignment of the work, either compromising or distorting said activity.
Keywords:
Learning and development of thought, meanings of teaching work, study situation, curriculum and teacher training.Introdução: antecedentes e contextualização da problemática em discussão
Neste texto compartilhamos um debate reflexivo sobre duas temáticas complexas e polêmicas no meio educacional que nos têm inquietado e mobilizado, no contexto do Grupo Interdepartamental de Pesquisa em Educação em Ciências (Gipec-Unijuí), para estudos em busca de uma compreensão mais ampla e profunda de aspectos a elas relacionados: a aprendizagem escolar e a formação de professores. Partimos do pressuposto de que a aprendizagem orienta e estimula os processos de desenvolvimento (Vigotski, 2000), e de que o principal fato humano é a transmissão e a apropriação da cultura. Nessa perspectiva, a aprendizagem é de fundamental importância, na medida em que se constitui como condição necessária para o desenvolvimento das características humanas, não naturais, responsáveis pela humanização do sujeito. Com base na perspectiva histórico-cultural, entendemos que as aprendizagens se dão em processos que incluem aquele que aprende, aquele que ensina e, mais, a ligação entre essas pessoas na relação pedagógica, sempre assimétrica por natureza. Entendemos que a aprendizagem desencadeada em um determinado meio cultural é que desperta o processo de desenvolvimento interno no indivíduo e, assim, este desenvolvimento não ocorre na falta de situações que propiciem um apren-dizado.Com esse entendimento, abordamos contribuições na perspectiva histórico-cultural para a compreensão de questões relacionadas aos processos de ensino, de aprendizagem e de desenvolvimento do ser humano pelo viés da reestruturação curricular na modalidade de Situação de Estudo (SE). O objetivo é conseguir um aprofundamento teórico-metodológico orientador do trabalho de formação inicial e continuada de professores. A SE é definida como uma organização curricular constituída a partir da identificação de temáticas da realidade, as quais são concebidas como situações vivenciais tomadas como objeto de estudo em contexto escolar. Ela permite novas percepções sobre problemas socioambientais, à luz das ciências, por meio da produção de conhecimentos escolares (Zanon & Maldaner, 2010).
Tal aprofundamento teórico-metodológico vem sendo construído no contexto do nosso grupo com a participação de professores de escolas de Educação Básica, estudantes de Graduação e Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em estudos em torno do nosso referencial teórico comum: a perspectiva histórico-cultural. Um processo de estudo coletivo sistemático, que desenvolvemos nos últimos anos, refere-se às ideias de Leontiev e seus colaboradores no que diz respeito à Teoria da Atividade; o propósito era compreender implicações dessa teoria para a aprendizagem escolar, para o desenvolvimento do psiquismo humano e para a formação de professores. Os desafios enfrentados pelos docentes e estudantes no cotidiano da escola e da universidade constituíram-se nos motivos produtores da necessidade do estudo, do que emergiu a questão orientadora deste texto: Quais relações entre práticas formativas de professores e seus interesses, necessidades ou motivos podem potencializar processos de aprendizagem capazes de contribuir na (re) significação do trabalho docente?
Em busca de respostas, inicialmente expressamos entendimentos sobre a aprendizagem escolar em relação aos diferentes estágios de desenvolvimento do psiquismo humano, baseando-nos na perspectiva histórico-cultural. Na sequência, refletimos sobre algumas práticas na formação docente inicial e continuada, apontando situações favoráveis para a apropriação do conhecimento de professor. Atentamos para o trabalho docente interpretado por meio do seu significado -finalidade como atividade fixada socialmente- e da sua relação com os sentidos produzidos pelo professor ao trabalho que realiza, alertando que a ruptura entre significado e sentido torna o trabalho alienado, comprometendo-o ou descaracterizando-o como atividade.
Contribuições deste estudo dizem respeito ao pressuposto fundamentado na teoria histórico-cultural de que o entendimento do processo de aprendizagem escolar e de formação de professores, articulado à reconstrução curricular na modalidade de SE, oferece condições favoráveis à apropriação dos conceitos científicos em processos de produção tanto do conhecimento escolar quanto do conhecimento de professor. Assim, a compreensão desses processos é fundamental na reconstrução do ensino e da formação.
Quadro teórico atinente à aprendizagem escolar e desenvolvimento do psiquismo
O ser humano, desde o início de sua vida, realiza uma série de aprendizados por meio da sua interação no meio físico e social. Passa a observar os objetos e as ações daqueles que o rodeiam, experimenta, imita e recebe instruções das pessoas mais experientes de sua cultura, aprende a fazer perguntas e também a obter respostas para uma série de questões. Como membro de um grupo sociocultural determinado, ele vivencia um conjunto de experiências e opera sobre todo o aporte cultural (conceitos, valores, ideias, objetos concretos, concepção de mundo, linguagens) a que tem acesso. É mediante tais aprendizados que ele se desenvolve e se humaniza na cultura, sendo importante, pois, entender esses processos.
Shuare (1990) postula que as mudanças históricas na sociedade e na vida material produzem mudanças na consciência e no comportamento humano. Segundo este autor, existe um desenvolvimento histórico dos fenômenos psíquicos e estes mantêm uma relação de dependência com relação à vida e à atividade social. Facci (2006, p. 12), por sua vez, reconhece que o psiquismo humano se desenvolve por meio da atividade social, a qual tem como traço principal a mediação por instrumentos e signos que se interpõem entre a pessoa e o objeto de sua atividade. Essa autora destaca que as funções psicológicas superiores são produtos da atividade cerebral. Elas têm uma base biológica, mas fundamentalmente são resultado da interação da pessoa no mundo, mediada pelos objetos culturais construídos pelos seres humanos.
Para Leontiev (2012), o que caracteriza a evolução da espécie humana, ou seja, o que diferencia o homem do animal é a capacidade que o homem tem de transformar a natureza, de criar a sua própria condição de existência e de regular seu próprio comportamento por meio de sua atividade prática chamada "trabalho". Nessa perspectiva teórica, o trabalho é considerado a atividade especificamente humana mediada por instrumentos criados pelo homem a partir de necessidades. Ao produzir um instrumento de trabalho, produzem-se, de modo concomitante, determinados conhecimentos em relação aos modos de como se pode fazê-lo e também em relação às suas funções. O conhecimento produzido na e pela elaboração do instrumento desenvolve, portanto, as aptidões humanas decorrentes da atividade humana que são cristalizadas nos produtos dessa atividade. Consequentemente, os instrumentos podem ser pensados como portadores do desenvolvimento histórico e da cultura. Dessa forma, as características do organismo humano seriam apenas condições prévias para o seu desenvolvimento, não estabelecendo "[...] o conteúdo, os limites e a direção desse desenvolvimento" (Duarte, 2013, p. 39).
Nessa linha de pensamento, Marx e Engels (1987) salientam que "da maneira como os indivíduos manifestam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, portanto, com sua produção, tanto com o que produzem como o modo como produzem" (p. 44). Ao agir sobre a natureza, transformando-a, o próprio homem se transforma, produz cultura, desenvolve novos comportamentos e novas habilidades. Leontiev (2004, p. 283) destaca que "no decurso da atividade dos homens, as suas aptidões, os seus conhecimentos e o seu saber-fazer cristalizam-se de certa maneira nos seus produtos (materiais, intelectuais, ideias)". Menciona, ainda, que o homem não nasce dotado das aquisições históricas da humanidade: "Resultando estas do desenvolvimento das gerações humanas, não são incorporadas nem nele, nem nas suas disposições naturais, mas no mundo que o rodeia" (p. 282). Além de produzir os instrumentos, o homem também transmite seus conhecimentos às gerações seguintes. Nessa perspectiva, Leontiev defende que:
Cada geração começa [...] a sua vida num mundo de objetos e fenômenos criados pelas gerações precedentes. Ela apropria-se das riquezas deste mundo participando do trabalho social e desenvolvendo assim as aptidões especificamente humanas que se cristalizam, encarnaram nesse mundo. (2004, p. 284).
Para Leontiev (2004), nos processos de apropriação o homem realiza uma determinada atividade que reproduz os traços humanos essenciais contidos/materializados no objeto de sua apropriação. Rossler (2004) corrobora com as ideias de Leontiev ao considerar que o homem se apropria das faculdades e aptidões físicas e psíquicas contidas no objeto, tanto em sua materialidade física quanto em sua significação social e seu uso, incorporando-as ao seu próprio ser. Ao evidenciar que o indivíduo interioriza determinadas formas de funcionamento que estão dadas pela cultura, mas que ao se apropriar delas transforma-as em instrumentos de pensamento e ação, Vigotski (2000) estabeleceu as bases para uma nova compreensão da relação entre o sujeito psicológico e o contexto histórico, que resgata o sentido subjetivo e pessoal do homem, mas situando-o na trama complexa das relações sociais. Nessa perspectiva, Oliveira (1999) postula que:
A inserção do indivíduo num determinado ambiente cultural é parte essencial de sua própria constituição enquanto pessoa. É impossível pensar o ser humano privado do contato com um grupo cultural, que lhe fornecerá os instrumentos e signos que possibilitarão o desenvolvimento das atividades humanas. O aprendizado, nesta concepção, é o processo fundamental para a construção do ser humano. O desenvolvimento da espécie está, pois, baseado no aprendizado que, para Vygotsky, sempre envolve a interferência, direta ou indireta, de outros indivíduos e a reconstrução pessoal da experiência e dos significados. (p. 78).
O conceito de significado, na perspectiva histórico-social, exige que se entenda a distinção entre atividade e ação. A atividade humana, segundo Leontiev (2004), constitui-se um conjunto de ações, e a necessidade objetiva ou o motivo pelo qual o indivíduo age não coincide com o fim ou o resultado imediato de cada uma das ações constitutivas da atividade. É somente por meio de suas relações com o todo da atividade, isto é, com as demais ações que a compõem, que o resultado imediato de uma ação se relaciona com o motivo da atividade. É um conjunto de ações que precisa manter coerência com o motivo (Basso, 1998). Para exemplificar essa situação, a autora faz referência à ação da professora que organiza as carteiras para favorecer a interação das crianças para a produção de um texto. A ação da professora pode parecer contrária ao bom andamento da aula, mas é coerente com uma atividade, como a discussão ou a produção de textos. Se as crianças não entenderem a relação entre essas ações e o motivo da atividade global, o trabalho educativo ficará comprometido. Isso significa afirmar que o significado das ações de todos os indivíduos que participam da atividade deve ser apropriado por eles, fornecendo a essas ações o sentido correspondente ao seu significado.
Elkonin (1987) e Leontiev (2004) mostram que o desenvolvimento da criança é determinado por certos estágios, caracterizados por uma relação determinada, e por uma atividade principal que desempenha a função de mais importante forma de relacionamento da criança com a realidade. Por atividade principal, Leontiev (2004) entende aquela que governa, em determinada fase de desenvolvimento, as mudanças mais significativas nos processos psíquicos e nos traços psicológicos da personalidade da criança, porém não é caracterizada pela atividade mais executada por ela, mas que, quando realizada, melhor promove o desenvolvimento.
Elkonin (1987) e Leontiev (1987) postulam que o homem, a partir do desenvolvimento de suas atividades, tal como elas se formam nas condições concretas dadas de sua vida, adapta-se à natureza, modifica-a, cria objetos e meios de produção desses objetos, para suprir suas necessidades. A criança, nesse caso, por meio dessas atividades principais, relaciona-se com o mundo, e, em cada estágio, formam-se nela necessidades específicas em termos psíquicos. Leontiev (1987) enfatiza que o desenvolvimento dessa atividade condiciona as mudanças mais importantes nos processos psíquicos da criança e nas particularidades psicológicas da sua personalidade. Segundo Elkonin (1987), os principais estágios de desenvolvimento pelos quais os sujeitos passam são: comunicação emocional do bebê, atividade objetal manipulatória, jogo ou brincadeiras, atividade de estudo, comunicação íntima pessoal e atividade profissional ou estudo.
A comunicação emocional do bebê com os adultos é a atividade principal desde as primeiras semanas de vida até aproximadamente um ano. Pela condição de dependência física, a criança necessita da atenção e dos cuidados do adulto. Nessa relação, desenvolve-se uma comunicação emocional pela qual o bebê aprende a utilizar o adulto para eliminar sua falta de conforto e para obter o que necessita. O processo de comunicar-se com o bebê, mesmo que este, inicialmente, parece nada compreender, tampouco realize alguma atividade comunicativa, faz com que a criança vá tomando parte dessa atividade. O importante nesse processo é a inserção, pelo adulto, da criança em novas relações que provocam novas aprendizagens. O adulto motiva a criança a agir com ele, começando a lhe mostrar o mundo material e os objetos humanos, e orientando o uso de tais objetos, mesmo que a criança ainda não conte com os movimentos sensório-motores para executar a ação. O que interessa à criança não é realizar a ação com perfeição, mas estar em comunicação com os adultos. Esse é o seu objetivo e, por conseguinte, seu motivo.
No segundo estágio, a atividade principal passa a ser a objetai manipulatória (instrumental), na qual tem lugar a apropriação dos procedimentos elaborados socialmente de ação com os objetos e, para que ocorra essa apropriação, é necessário que os adultos mostrem essas ações às crianças. Por intermédio da linguagem, a criança mantém contato com o adulto que a insere no mundo dos objetos humanos ensinando-a a manipulá-los. A atividade dominante passa a ser secundária, por surgirem novos motivos, como aprender com o fato de manipular e utilizar os objetos humanos.
Embora a linguagem constitua uma forma de comunicação com os adultos, para Elkonin (1987) ela não é a atividade principal nesta etapa de desenvolvimento: sua função maior é auxiliar a criança a compreender a ação dos objetos, é assimilar os procedimentos, socialmente elaborados, de ação com os objetos. Leontiev (2012) afirma que, desde o princípio, esta comunicação tem a estrutura do processo mediatizado que caracteriza toda a atividade humana, e nas suas formas primeiras e rudimentares não é mediatizada pela palavra, mas pelo objeto.
Segundo Lazaretti (2015), as ações com os objetos que a criança realiza no primeiro ano, sob orientação dos adultos, permitem-lhe que aprenda somente a utilizar as propriedades externas do objeto. Posteriormente, na primeira infância, os objetos se tornam instrumentos que têm uma forma determinada para seu uso, socialmente elaborada, e é preciso aprender a atividade que lhes designou a função social. Para Leontiev (2012, p. 268) "o instrumento é o produto da cultura material que leva em si, de maneira mais evidente e mais material, os traços característicos da criação humana". Ou seja, não é apenas um objeto de uma forma determinada, possuindo dadas propriedades. Consoante Leontiev, "o instrumento é ao mesmo tempo um objeto social no qual estão incorporadas e fixadas as operações de trabalho historicamente elaboradas" (2012, p. 268).
À medida que a criança cresce novos motivos surgem. No período pré-escolar, a atividade principal passa a ser o jogo ou a brincadeira. Por intermédio dessas atividades, a criança apossa-se do mundo concreto dos objetos humanos, por meio das ações realizadas pelos adultos com esses objetos. Facci (2006) observa que as brincadeiras das crianças não são instintivas e o que determina seu conteúdo é a percepção que elas têm do mundo dos objetos humanos. Ao operar com os objetos utilizados pelos adultos, a criança toma consciência deles e das ações humanas realizadas com eles. Para a criança, neste nível de desenvolvimento físico não há ainda atividade teórica abstrata, e a consciência das coisas, por conseguinte, emerge nela, primeiramente, sob forma de ação.
Leontiev (2012, p. 121) menciona que, durante o desenvolvimento dessa consciência, a criança "tenta integrar uma relação ativa não apenas com as coisas diretamente acessíveis a ela, mas também com o mundo mais amplo, isto é, ela se esforça para agir como um adulto". O principal significado do jogo, para Elkonin (1987), é permitir que a criança modele as relações entre as pessoas. Assevera, ainda, que a evolução do jogo prepara para a transição a uma fase nova, superior, do desenvolvimento psíquico: a transição para um novo período evolutivo.
Lazaretti (2015), apoiada nas ideias de Elkoni (1987), destaca que, no final da idade pré-escolar, a criança produz novas razões para ser adulto: "o desejo de ir à escola e começar a realizar um trabalho social sério e apreciado pela sociedade. Para a criança, esse é o caminho para a vida adulta" (p. 126). A passagem da criança da infância pré-escolar à fase seguinte, porém, está condicionada, então, pela sua entrada na escola, e a atividade principal passa a ser o estudo. Para Elkonin (1987, p. 119):
O estudo, isto é, aquela atividade em cujo processo transcorre a assimilação de novos conhecimentos e cuja direção constitui o objetivo fundamental do ensino é a atividade dominante neste período. Durante este, tem lugar uma intensa formação das forças intelectuais e cognitivas da criança. A importância primordial da atividade de estudo está determinada, ademais, porque por meio dela se mediatiza todo o sistema de relações da criança com os adultos que a circulam, incluindo a comunicação pessoal na família.
O ensino escolar introduz, portanto, neste estágio, o aluno na atividade de estudo, de forma que ele se aproprie dos conhecimentos científicos. De acordo com Leontiev (2004, p. 340), a apropriação "é um processo que tem por resultado a reprodução pelo indivíduo, de aptidões, faculdades e comportamentos humanos formados historicamente". Segundo Itelson (1979), o estudo é a atividade específica do homem que tem como fim direto a aprendizagem. Davidov (1988) ressalta que sobre a base dos estudos surgem a consciência e o pensamento teórico e se desenvolvem, entre outras funções, as capacidades de reflexão, análise e planificação mental.
Na transição da infância à adolescência aparece uma nova atividade principal: a comunicação íntima pessoal. Com base em Elkonin, Lazaretti (2015) acrescenta que nesse período:
[...] têm uma influência determinante as mudanças na situação social, a complicação da atividade escolar, a amplificação e aprofundamento das relações com os demais, a crescente independência, o aumento das exigências que para ele tem os adultos, assim como o aumento relativo de sua responsabilidade em consequência do aumento de suas forças físicas e de suas possibilidades morais e volitivas. (Elkonin, 1969 como citado em Lazaretti, 2015, p. 127).
Isso determina as influências das condições sociais no desenvolvimento do adolescente. Para Facci (2006), nesse período ocorre uma mudança na posição que o jovem ocupa em relação ao adulto. A autora expõe que essa é uma forma de reproduzir, com os companheiros, as relações existentes entre os adultos. A atividade de estudo torna-se submetida a anseios mais amplos, aliados aos interesses sociais. Nessa etapa ocorre, por parte dos alunos, o domínio geral da atividade de estudo, a formação de seu caráter voluntário, a tomada de consciência das particularidades individuais de trabalho e a utilização desta atividade como meio de organizar as interações sociais com os companheiros de estudo.
Segundo Vigotski (2000), neste período de desenvolvimento produz-se no adolescente um importante avanço no crescimento intelectual, formando-se os verdadeiros conceitos. Para este autor, o aprender a dirigir os próprios processos mentais com ajuda de signos é uma parte integral do processo da formação dos conceitos. A capacidade para regular as próprias ações, usando os meios auxiliares, alcança seu completo desenvolvimento somente na adolescência.
Nessa mesma linha de pensamento, Larenzetti (2015, p. 128) observa que "para que o estudante adquira as premissas da responsabilidade, do compromisso e da coletividade, é necessário, antes de tudo, um amplo desenvolvimento das condições sociais de que faz parte". Nos dizeres de Facci (2006), pela comunicação pessoal com seus iguais, o adolescente forma as suas ideias sobre o mundo, sobre as relações entre as pessoas, o próprio futuro e estrutura o sentido pessoal da vida. Estabelecem-se interesses profissionais e, portanto, a atividade profissional de estudo começa a tornar-se dominante. Nessa idade escolar avançada a atividade de estudo passa a ser utilizada como meio para a orientação e a preparação profissional, ocorrendo o domínio dos meios de atividade de estudo autônomo. Dessa forma, podemos entender que é a sociedade que determina o conteúdo e a motivação na vida da criança, pois todas as atividades dominantes aparecem como elementos da cultura humana.
Pelo exposto, fica demarcado o entendimento de que, antes de entrar na escola, a criança já se apropriou de uma série de conhecimentos do mundo que a cerca. Ao ingressar na escola, no entanto, outro tipo de conhecimento se processa. Nas palavras de Oliveira (1999), cabe ao ensino escolar, portanto, a importante tarefa de transmitir à criança os conteúdos historicamente produzidos e socialmente necessários, selecionando o que desses conteúdos encontra-se, a cada momento do processo pedagógico, na zona de desenvolvimento próximo. Para explicar o papel da escola no processo de desenvolvimento do indivíduo, Vigotski (2000) faz uma importante distinção entre conhecimentos construídos na experiência pessoal, concreta e cotidiana das crianças, que ele chamou de conceitos cotidianos ou espontâneos, e aqueles elaborados na sala de aula, adquiridos por meio do ensino sistemático, que chamou de conceitos científicos.
Os conceitos cotidianos referem-se àqueles conceitos construídos a partir da observação, manipulação e vivência direta da criança. Como exemplo, explica que na vida cotidiana a criança pode construir o conceito "gato". Essa palavra resume e generaliza as características desse animal (não importa o tamanho, a raça, a cor, etc.) e o distingue de outras categorias, tal como boi, cachorro, pássaro. Já os conceitos científicos se relacionam aos eventos não diretamente acessíveis à observação ou ação imediata da criança: são os conhecimentos sistematizados, adquiridos nas interações escolarizadas. Por exemplo, na escola, o conceito "gato" pode ser ampliado e tornar-se ainda mais abstrato e abrangente, por ser incluído em um sistema conceitual de abstrações graduais, com diferentes graus de generalização: gato, mamífero, vertebrado, animal, ser vivo constituem uma sequência de palavras que, partindo do objeto concreto "gato", adquirem cada vez mais abrangência e complexidade.
Esses dois tipos de conceitos são diferentes, mas intimamente relacionados e influenciados um pelo outro, pois ambos fazem parte de um único processo: o de desenvolvimento da formação de conceitos. Esse processo é longo e complexo, mas fundamental para o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. Isso porque envolve operações intelectuais dirigidas pelo uso das palavras (tais como atenção deliberada, memória lógica, abstração, capacidade para comparar e diferenciar). Vigotski (2000) destaca que para aprender um conceito é necessária, além das informações recebidas do exterior, uma intensa atividade mental por parte da criança. Essa compreensão sobre o desenvolvimento do psiquismo humano traz implicações para as relações entre o ensino e a aprendizagem e, mais especificamente, para a função da intencionalidade no processo educativo.
Isso mostra a importância de que o professor compreenda os motivos do estudo para seus alunos, uma vez que eles estão vinculados ao sentido que esta atividade (estudo) tem para eles, pois "somente motivos elevados dão às ações um conteúdo completo e firme" (Smirnov, 1961 como citado em Zanelato, 2008, p. 51). Desse modo, os interesses e motivos dos alunos não são entendidos como algo natural e imutável; ao contrário, eles podem ser modificados e novas necessidades podem ser criadas ao longo do processo de escolarização. Produzir esses motivos e necessidades é um dos grandes desafios a ser enfrentado pela sociedade, pela escola e pelo professor. Entendemos que, da mesma forma em que se dá a apropriação dos conhecimentos cotidianos e científicos, ocorre a apropriação do conhecimento de professor.
Percurso metodológico do estudo desenvolvido
Este texto emergiu de reflexões críticas sobre investigações desenvolvidas no contexto do Gipec nos últimos 25 anos, com a atenção direcionada para movimentos de constituição docente associados a práticas formativas vivenciadas na formação inicial e continuada de professores de Ciências. Para isso, foram procedidas leituras atenciosas de publicações, relatórios, dissertações, teses e agendas de bordo produzidos no contexto do Gipec-Unijuí no referido período.
Com apoio no referencial histórico-cultural, desenvolvemos uma pesquisa de caráter qualitativo (Lüdke & André, 2001), mediante um processo de análise referido por Moraes (2003) como um exercício de elaborar sentidos e significados a partir do entendimento de que:
toda leitura já é uma interpretação e que não existe uma leitura única e objetiva. Ainda que, seguidamente, dentro de determinados grupos, possam ocorrer interpretações semelhantes, um texto sempre possibilita múltiplas significações. Diferentes sentidos podem ser lidos em um mesmo texto. (...) A polissemia que está implícita em qualquer texto pode originar diferentes tipos de leituras. Algumas interpretações podem ser compartilhadas, com relativa facilidade, entre diferentes leitores. (Moraes, 2003, pp. 192-193).
Corroborando a ideia de que "a multiplicidade de significados que é possível construir a partir de um mesmo conjunto de significantes tem sua explicação nos diferentes pressupostos teóricos que cada leitor utiliza em suas leituras" (Moraes, 2003, p. 192), vivenciamos um processo compartilhado de construção de compreensões com base em um conjunto de textos, analisando-os e expressando, a partir da análise, alguns dos sentidos e significados na perspectiva de possibilitar a emergência de novas compreensões em relação aos fenômenos investigados. Assim, "os textos são assumidos como significantes em relação aos quais é possível exprimir sentidos simbólicos pautados nas visões expressas" (Moraes, 2003, p. 193). Foi, pois, com esses entendimentos, que produzimos as análises, abordagens e interpretações apresentadas neste texto.
A formação de professores articulada a processos de produção curricular
A formação do professor dá-se em processos interativos permanentes que iniciam quando o indivíduo está em contato com seu primeiro professor ou mesmo antes, ao interagir em situações que podem ir criando imagens sobre o que seja a escola ou o professor. É nos primeiros anos de vida e nos primeiros contatos com o ambiente escolar que passam a se delinear as crenças sobre a educação, a escola, o professor, métodos e materiais de ensino, condições para a aprendizagem (Feiman-Nemser, 2001 como citado em Tardif, 2000). Esses saberes permanecem fortes, e quando começam a atuar como professores são, principalmente, essas crenças e imagens tácitas que eles reativam para solucionar seus problemas profissionais.
A formação de professor apenas na vivência, ou na formação ambiental, cria uma ideia restrita da profissão docente, "uma imagem espontânea de ensino, para o qual basta um bom conhecimento da matéria, algo de prática e alguns complementos psicopedagógicos" (Maldaner, 1999, p. 1). Esses conhecimentos que o professor se apropria nas vivências cotidianas são importantes, mas eles precisam ser problematizados e analisados à luz dos avanços teóricos. Com base em Smolka e Góes (2000), entendemos que essa problematização de teorias e ações pessoais requer o estabelecimento de relações e interações intencionais, assimétricas e sistemáticas entre os sujeitos, uma vez que as ações são "inescapavelmente mediadas" e "tornam-se práticas significativas, dependendo das posições e dos modos de participação dos sujeitos nas relações" (p. 31).
Nos cursos de formação de professor abrangidos no Gipec-Unijuí propomos práticas formativas direcionadas à transformação de concepções e imagens sobre o ser professor, produzidas, na vivência cotidiana, pela inclusão do futuro professor em processos de reestruturação curricular na modalidade de SE, com análise da especificidade do trabalho docente, especialmente das relações entre o significado e os sentidos a ele atribuídos. Entendemos que a forma com que o indivíduo se apropria das significações depende do sentido pessoal que elas têm para ele.
No caso do professor, o significado do seu trabalho é formado pela finalidade da ação de ensinar. Isto é, pelo seu objetivo e pelo conteúdo concreto efetivado por meio das operações realizadas conscientemente por ele, considerando as condições reais e objetivas na condução do processo de apropriação do conhecimento pelo aluno (Basso, 1998). Como exemplo, podemos lembrar o sistema fabril, que vai se objetivando na medida em que incorpora conhecimentos científico-tecnológicos produzidos fora do contexto prático, visando à produção em escala cada vez maior. Há a objetivação crescente do processo, deixando, em contrapartida, uma menor margem de autonomia ao trabalhador.
No que diz respeito às características desse processo na docência, elas têm dificultado a objetivação do processo de trabalho do professor na direção do desenvolvimento da autonomia docente e do reconhecimento da importância das condições subjetivas para a prática pedagógica. Disso emergem espaços para alienações, a exemplo da subjugação da prática docente, a intervenções de especialistas externos no controle do trabalho do professor. Essas condições subjetivas referem-se, fundamentalmente, à formação do professor, que inclui a compreensão do significado e dos sentidos por ele atribuído a sua atividade.
Uma mudança nesse cenário depende, em grande parte, de uma formação sólida e adequada do professor e do entendimento claro do significado e dos sentidos atribuídos ao seu trabalho, que podem ser promovidos por meio de interações colaborativas entre sujeitos vinculados às instituições responsáveis pela formação inicial e continuada. Elas também são produções humanas e se encontram intrinsecamente vinculadas aos movimentos de reforma educativa, incluindo as políticas públicas e os próprios contextos curriculares.
Por exemplo, nas ações com os estudantes da Licenciatura, em disciplinas de Estágio, a ação do professor formador de inserir o licenciando no processo de reconstrução curricular na modalidade de se tem como motivo a apropriação, pelo estagiário, do conhecimento de professor com desenvolvimento da autonomia docente. Isso é conseguido ao produzir nele a necessidade de articular e mobilizar conhecimentos adquiridos, ao longo da formação acadêmica, para enfrentar diferentes situações singulares de sala de aula. Se o licenciando não se apropriar do significado dessa ação do professor formador, ele poderá produzir uma proposta curricular a partir, apenas, daquilo que os livros didáticos lhe apresentam, com diferente implicação em seu estudo e dedicação.
A mudança nas práticas formativas histórica e coletivamente empreendidas, em nosso contexto, refere-se às sistemáticas reformulações dos currículos das Licenciaturas, em resposta a problemas oriundos tanto da formação inicial quanto do contexto; por exemplo, na criação de novas disciplinas, como Teorias de Ensino de Ciências, Pesquisa em Ensino de Ciências (I e II), Pesquisa em Ensino de Químicas (I e II), Seminários (I, II, III, IV e V), Fundamentos Teóricos e Práticos em Ciências, Epistemologia, Estágios, entre outras. Cabe destacar a sistemática criação de espaços de interação em parceria colaborativa entre universidade e escola.
Destacamos a inserção do licenciando em processos de pesquisa-ação com acompanhamento sistemático, pela pesquisa, de situações práticas específicas em processo de mudança, como é o caso do desenvolvimento das ses. Essa prática tem apontado questões que necessitam atenção por parte dos professores formadores. Uma delas refere-se à necessidade de compreensão, por parte do licenciando em estágio, dos diferentes papéis que ele desempenha nesse período formativo. O futuro professor, enquanto atua na escola, necessita dar-se por conta da "perda do lugar de aluno" e assumir o "novo lugar", permitindo a sua constituição profissional. Nessa passagem do lugar de "aluno" para o de "professor", a posição que ele assume se inverte na relação de assimetria. Na condição de aluno sua atividade principal é o estudo; na condição de professor, o ensino. O significado da atividade do estagiário depende do lugar que ele ocupa nessa relação, dos sentidos que ele produziu e das necessidades e motivos que o movem para a ação. Reiteramos que os interesses e motivos podem ser modificados ao longo da formação acadêmica profissional do professor e novas necessidades podem ser criadas. Essa é uma das tarefas que nos cabe pela nossa condição de formadores de professores. Isso se estende também para o contexto dos processos de formação continuada no que se refere à continuidade das vivências nos processos de interação entre professores mais jovens e mais experientes e entre pesquisadores também mais jovens e mais experientes.
Em nosso grupo, desde os anos 80 temos vivenciado movimentos de criação de espaços formativos, dinamizadores de interações entre a formação inicial e continuada, com vistas a reconstruir concepções e práticas curriculares na interação entre escolas de Educação Básica e Licenciatura. Uma prática formativa que queremos destacar aqui foi a que possibilitou, nesse período, a produção coletiva de uma coleção de livros didáticos alternativos que abrangem todas as séries do Ensino Fundamental (publicados pela Editora Unijuí - Ijuí-RS), mediante parceria colaborativa entre universidade e escola. Houve um amplo movimento formativo que marcou o ensino escolar na região e também a Licenciatura, com a veiculação de propostas alternativas de ensino de Ciências. Cabe destacar a conquista de atribuição de tempo semanal (4 horas) dentro da carga horária dos professores das escolas de Educação Básica para produzirem inovações curriculares, conquista essa que foi difundida no Estado e considerada na época um importante fator para a valorização do magistério público gaúcho como política de formação docente articulada a processos de reestruturação curricular.
A referida série de livros didáticos contemplava a inserção da experimentação no ensino-com valorização do contexto local, de forma inter-relacional e com avanços na compreensão da finalidade social do ensino de Ciências- na relação com a constituição de uma nova tradição aliada à criação de novas ênfases curriculares articuladoras de processos de mudança na formação inicial e continuada dos professores. Uma das características da coleção de livros residia na ideia de ensinar ciências por meio de uma organização curricular que contemplava abordagens sobre um conjunto de temas amplos de estudo ao longo das séries. Uma meta dessa produção curricular era a integração dos conteúdos escolares com os temas alimentação, saúde, energia, universo e ambiente.
Importantes avanços foram reconhecidos e valorizados, em especial, no que diz respeito à inserção de atividades práticas no ensino das ciências. Contudo, emergiu uma crítica à referida proposta alternativa de ensino por parte dos próprios autores da mesma: ela não rompia com a organização tradicional do ensino, pois mantinha os mesmos conteúdos nas mesmas séries, tal como acontecia na organização curricular tradicional. Ou seja, a crítica era à linearidade e fragmentação do conhecimento escolar.
Disso surgiram os primeiros passos rumo à concepção e proposição de uma organização curricular inovadora -a SE- com caráter contextual e inter-relacional, fruto das interações e pesquisas sobre problemas identificados nas interações junto a escolas e professores de Educação Básica da região, ainda antes da publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (Ministério da Educação MEC, 1998). É impossível mencionar aqui os inúmeros contextos de reconstrução curricular vivenciados no âmbito do nosso grupo, ao longo dos anos, culminando com a concepção e proposição da se. O caminho percorrido decorreu de uma complexidade de interações e ações em espaços de organização de processos de formação inicial e continuada de professores na área.
Como objeto de estudo e de produção coletiva, a SE privilegia uma formação perpassada por processos de produção de conhecimentos escolares de caráter inter-relacional e contextual, com características tanto disciplinares quanto interdisciplinares. Nas interações em contexto formativo, ela tem contribuído para (re)significar o trabalho docente diante do potencial de mudança que ela representa ante o papel social da escola como força constitutiva do pensamento, e pelos conceitos significados em contextos de produção do conhecimento escolar referenciado em situações da vivência cotidiana.
O movimento de proposição da SE emergiu, pois, da necessidade de promover uma educação básica de qualidade para todos. Afinal, a crescente complexidade sociocultural das novas gerações torna os mundos da vida cada vez mais exigentes de conhecimentos dinâmicos e plurais, com os quais o estudante se reconhece no mundo na medida em que reconhece, compreende e transforma os objetos culturais do mundo em que vive. Isso situa o papel social da escola de propiciar uma formação que permite ao estudante se posicionar, julgar, tomar decisões, agir e ser responsabilizado por isso, e "essas são capacidades mentais construídas nas interações sociais vivenciadas na escola, em situações complexas que exigem novas formas de participação" (MEC, 2006, pp. 105-106).
Consideramos importante compreender iniciativas de reorganização do currículo escolar como essas, capazes de articular processos de formação docente que promovam a apropriação do conhecimento escolar de forma ampla, aliada ao desenvolvimento de capacidades, valores e atitudes pertinentes ao desenvolvimento humano/social. No nosso grupo, o caminho perseguido ao longo dos anos foi e vem sendo o de organizar o currículo escolar na modalidade de SE, com a criação de sistemáticos novos espaços de interação entre professores da Educação Básica, licenciandos e professores da Licenciatura. Isso possibilita avanços nas tomadas de consciência sobre a característica central da SE: ela permite avanços, simultaneamente, nos processos de reconstrução cur-210 ricular e de formação docente. É assim, ao longo dos anos, à medida que a SE vem sendo sistematicamente entendida como objeto complexo, cuja compreensão escolar exige uma multiplicidade de conhecimentos dinâmicos e plurais.
A partir de sistemáticos relatos reflexivos sobre as práticas, emergem estudos, planejamentos e ações, com articulação de novas abordagens e discussões, que perpassam processos coletivos de elaboração curricular pautados em distintas compreensões sobre as situações vivenciais. Estes ampliam as aprendizagens atinentes aos novos conhecimentos escolares, produzidos como redes complexas de relações entre conceitos. Articulando conhecimentos dentro e fora dos contextos disciplinares da área, em cada SE coletivamente produzida são vivenciados processos de produção de novos sentidos aos saberes e práticas educativas. Nesse processo, cada disciplina explicita relações -entre conceitos e conteúdos- a serem exploradas na SE, cabendo ao professor ajudar a controlar os processos de ampliação e restrição na produção de sentidos a eles.
Deste modo, nos processos de formação docente, seja nos contextos das escolas ou da universidade, o enfoque na área caminha junto com as interlocuções de saberes que, sistematicamente dialogantes, se constituem em dinâmicos entrecruzamentos de processos interativos em uma diversidade de conhecimentos sobre práticas e teorias que permeiam as novas dinâmicas curriculares. Nessa perspectiva, a formação na área articula-se com uma diversidade de dimensões formativas como movimento propulsor de processos de formação articulados pela reconstrução do currículo escolar como um todo, extrapolando limites do contexto interno de cada área. Ao mesmo tempo em que a formação realimenta o reconhecimento da relação de pertencimento ao coletivo interno da área, tal reconhecimento carrega marcas de interlocuções outras, que realimentam movimentos de articulação entre pensamentos e ações, individuais e sociais, rumo à (re)significação da Educação Básica.
É assim que, articuladamente com os estudos, planejamentos e ações, as temáticas vêm sendo sistematicamente compreendidas em um âmbito teórico mais avançado. Isso acontece integradamente à socialização de relatos da prática de cada equipe de professores, com mediações e reflexões na interlocução entre áreas, disciplinas, níveis de ensino, temáticas escolares e instituições, visando, assim, uma aprendizagem mútua em relação de reciprocidade e assimetria. Esses movimentos mobilizam interlocuções referentes à matriz teórica pertinente às temáticas em estudo, com foco na SE, pela mediação de abordagens e reflexões que possibilitam a transformação de conhecimentos sobre limites e potencialidades das teorias e das práticas em construção.
Esses processos formativos vão se desdobrando em movimentos de (re)construção social dos saberes, crenças e concepções subjacentes aos focos de mudança em propensão. Trata-se de mudanças que emergem no seio de discussões críticas e interativas capazes de movimentar novos rumos de articulação entre teorias e práticas, em meio aos processos de sistematização de relatos sobre as vivências curriculares. Essas mudanças, que acontecem simultaneamente na formação e na prática docente, vêm à tona entre processos coletivos de produção de diversas formas de visualização da própria organização curricular na modalidade de SE à medida que cada distinto contexto coparticipa de forma diferenciada nos movimentos de produção de sentidos e significados às ações e estudos coletivamente empreendidos.
Algumas Reflexões Finais
A característica central das interações que temos vivenciado no contexto do Gipec-Unijuí é a delas serem pautadas em sistemáticos processos de estudo, planejamento e ação colaborativos que favorecem o entrecruzamento de reflexões críticas sobre mudanças de concepções e práticas coletivamente empreendidas na direção de produzir avanços na formação e nos currículos a ela vinculados. Colocar-se em um movimento que permite recriar teorias e práticas constitutivas das dinâmicas formativas tem sido um processo exigente de clareza conceitual no sentido de não dicotomizar a relação entre as dimensões do pensar, do saber, do refletir e do fazer, o que vai colocando em movimento a (re)significação de uma educação em Ciências atrelada ao trabalho docente constitutivo da existência humana/social.
As abordagens e discussões feitas no Gipec-Unijuí sinalizam a importância de reflexões pedagógicas e epistemológicas sistemáticas, com problematização crítica e transformação de entendimentos orientados e orientadores de formas de ruptura com o status quo. Referendamos a importância da participação da se como instrumento cultural específico que mobiliza permanentes relações de diálogo entre distintas formas de saber, cotidiano, ciências e outros, acenando para uma visão plural e dinâmica da cultura, sempre mediada por atividades, linguagens e conhecimentos constitutivos da existência humana em questão.
Nos espaços intencionalmente planejados, novos entendimentos são produzidos sobre a finalidade social dos currículos e da formação docente como forma específica de existência humana que, sendo socialmente produzida e validada no âmbito de comunidades específicas, vem disponibilizando, historicamente, sistemáticas ferramentas culturais que se modificam e alteram âmbitos diversificados de interação e ação, coparticipando na constituição da nossa área como campo da existência humana.
Problematizando e (re)entendendo desafios que se apresentam no trabalho desenvolvido por educadores em Ciências em diversos níveis e modalidades de ação pedagógica, a SE contribui para que os aprendentes e os ensinantes reconheçam-se a si próprios, em seus mundos, à medida que reconhecem os saberes/fazeres pertinentes aos diferentes contextos socioambientais em que vivem e atuam. Avançar na compreensão das abordagens e tematizações no contexto das SES contribui na produção de (re)significação do que ela representa na direção de sinalizar implicações para a (re)construção da finalidade social da educação em Ciências atribuída a entendimentos constituídos no e do ensino que vimos histórica e culturalmente desenvolvendo, em nossa área.
Defendemos que é na vivência sociocultural coletivamente transformada na SE que vai sendo articulada, na prática, uma diversidade de saberes cotidianos dialogantes com conhecimentos científicos sistematicamente mediados. É o processo de (re)criação da organização curricular que possibilita uma formação com características inovadoras, junto com a (re)significação dos objetos complexos de estudo que passam a ser coletivamente compreendidos na escola. Com a compreensão da SE à luz das ciências, o trabalho docente passa por novas formas de reconhecimento em meio à riqueza conceitual de cada SE que é tomada como objeto complexo a ser ressignificado na relação com saberes dos estudantes, ampliando-os, transformando-os e contribuindo, dessa forma, para decisões e ações mais conscientes e responsáveis.
É a produção coletiva das novas situações vivenciais atinentes a cada nova SE que contribui como objeto complexo de estudo, planejamento e ação, possibilitando avanços na compreensão do que seja a qualificação da vida socioambiental das pessoas abrangidas, como mudança que atinge escolhas, hábitos, atitudes e ações, pela consciência acerca dos conhecimentos nos quais elas se fundamentam.
É assim que, nas interações entre sujeitos que vivenciaram em suas trajetórias de vida distintos contextos de formação e prática, o trabalho docente passa a assumir características sistematicamente mais complexas ante os desafios de (re)pensar e transformar a prática e a formação, de forma gradativa e processual, cada vez com maior amplitude e profundidade compreensiva nos movimentos formativos em construção. Isso acena para uma perspectiva dialética de entendimento da prática educativa como inerente ao mundo do trabalho na vivência socioambiental em sentido amplo, que, na organização curricular na modalidade de SE, recria a vida ao recriar a concidadania constitutiva de uma sociedade com qualidade de vida para todos.