Tecné, Episteme y Didaxis: TED
0121-3814
Universidad Pedagógica Nacional
https://doi.org/

Recibido: 20 de enero de 2018; Aceptado: 22 de febrero de 2019

Aspectos da natureza da ciência presentes no discurso científico: investigando os efeitos de sentido da linguagem científica


Aspects of the Nature of Science in Scientific Discourse: Investigating the Meaning Effects of Scientific Language


Aspectos de la naturaleza de la ciencia presentes en el discurso científico: investigando los efectos del sentido del lenguaje científico

L. Massi, *S. Queiroz, **

Doutora em Ensino de Ciências. Professore* Assistente Doutora. Faculdade de Ciências e Letras. Universidade Estadual Paulista (UNESP) Araraquara, Brasil lucianamassi@fclar.unesp.br ORCID 0000-0001-8761-3181 Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras Universidade Estadual Paulista (UNESP) Araraquara Brazil
Doutora em Química. Professora livre-docente. Instituto de Química de Sao Carlos. Universidade de Sao Paulo (USP). Sao Carlos, Brasil salete@iqsc.usp.br ORCID 0000-0001-7398-5515 Universidade de São Paulo Instituto de Química de Sao Carlos Universidade de Sao Paulo (USP) Sao Carlos Brazil

Resumo

Dentre os diversos desafios da Educação em Ciências (EC), familiarizar os alunos em relação à linguagem científica e levá-los a compreender aspectos da Natureza da Ciência (Ndc) são elementos tão importantes quanto o ensino e aprendizagem de conceitos científicos. Embora esses dois primeiros desafios sejam bastante explorados nas pesquisas em EC percebemos pouca preocupação em articulá-los. Nos perguntamos em que medida a própria linguagem científica canónica contribui para a manutenção ou ruptura com visões de ciência que refletem a forma como o conhecimento científico é produzido? Nesse sentido, este artigo teórico pretende explorar essas relações a partir da contribuição da Análise do Discurso (AD) de linha francesa, que nos permite reconhecer os efeitos de sentido do texto científico, e das pesquisas recentes sobre Ndc, que discutem aspectos fundamentais para o entendimento do processo de produção do conhecimento científico. Identificamos três articulações frutíferas entre essas perspectivas, partindo da caracterização do discurso científico com base na AD: a ausência de subjetividade e a dimensão humana do trabalho científico; a interdição a interpretação e aspectos comunicativos, históricos e criativos do processo de produção do conhecimento científico e a intertextualidade explícita e o caráter coletivo do trabalho do cientista. Concluímos que esse tipo de análise ilustra que a linguagem científica condensa elementos que contribuem tanto para ratificar visões distorcidas de ciência quanto para retificá-las, o que implica para o ensino e as pesquisas em EC.

Palavras-chave:

Linguagem científica, natureza da ciência, efeitos de sentido, análise do discurso.

Abstract

Among the many challenges of Science Education (SE), familiarizing students with scientific language and getting them to understand aspects of the Nature of Science (NOS) are as important elements as teaching and learning scientific concepts. Although these first two challenges are widely explored in SE research, we see little concern in articulating them. We wonder to what extent canonical scientific language itself contributes to maintaining or breaking with views of science that reflect the way scientific knowledge is produced? In this sense, this theoretical article intends to explore these relations from the contribution of the French Discourse Analysis (DA), which allows us to recognize the meaning effects of the scientific text, and recent research on NOS, which discuss fundamental aspects for the understanding of the process of production of scientific knowledge. We identified three fruitful articulations between these perspectives, starting from the characterization of scientific discourse based on DA: the absence of subjectivity and the human dimension of scientific work; the interdiction to interpretation and communicative, historical and creative aspects of the scientific knowledge production process; and the explicit intertextuality and collective character of the scientist's work. We conclude that this kind of analysis illustrates that scientific language condenses elements that contribute both to ratify distorted views of science and to rectify them, which implies teaching and research in SE.

Keywords:

Scientific language, nature of science, sense effects, speech analysis.

Resumen

Entre los diversos desafíos de la Educación en Ciencias (EC), familiarizar a los alumnos con relación al lenguaje científico y llevarlos a comprender aspectos de la Naturaleza de la Ciencia (Ndc) son elementos tan importantes como la enseñanza y aprendizaje de conceptos científicos. Si bien estos dos primeros desafíos se exploran ampliamente en la investigación de la EC, vemos poca preocupación en articularos. Nos preguntamos en qué medida el lenguaje canónico científico ha contribuido al mantenimiento o la ruptura de las visiones de la ciencia que reflejan cómo el conocimiento científico es producido. En este sentido, este artículo teórico pretende explorar estas relaciones basadas en la contribución del Análisis del Discurso (AD) de línea francesa, que nos permite reconocer los efectos del significado del texto científico, y las investigaciones recientes sobre Ndc, que discuten aspectos fundamentales para comprender el proceso de producción de conocimiento científico. Identificamos tres articulaciones fructíferas entre estas perspectivas, basadas en la caracterización del discurso científico basado en AD: la ausencia de subjetividad y la dimensión humana del trabajo científico; la prohibición a la interpretación y los aspectos comunicativos, históricos y creativos del proceso de producción de conocimiento científico y la intertextualidad explícita y / o el carácter colectivo del trabajo del científicoO Concluimos que este tipo de análisis ilustra que un lenguaje científico condensa elementos que contribuyen tanto a ratificar puntos de vista distorsionados de ciencia como a rectificarlos, lo cual tiene implicaciones para la enseñanza y las investigaciones en EC.

Palabras clave:

Lenguaje científico, naturaleza de la ciencia, efectos de sentido, análisis de discurso.

A preocupação com a linguagem científica está presente nas pesquisas em ducação em Ciências (ec) de diversas formas. Ela envolve o entendimento dos alunos em relação aos conceitos científicos, principalmente quando as palavras usadas na ciência têm sentido distinto no cotidiano (Lopes, 2007), e fornece um caminho seguro para investigar as interações entre professor-aluno como forma de mapear o processo de ensino-aprendizagem (Mortimer, 2002). Recentemente essa preocupação se ampliou para formar professores conscientes da importância da linguagem nas interações com os estudantes (Mortimer e Scott, 2002) considerar a multimodalidade da linguagem (Mortimer et al., 2014) e as construções de argumentos por parte dos alunos (Scarpa, 2015).

Embora bastante associada ao processo de ensino-aprendizagem, entendemos que a linguagem comporta outra dimensão constitutiva que vem sendo pouco explorada. Ao aprender ciência, além dos seus conceitos específicos - para os quais os estudos anteriores têm contribuído - entendemos que os alunos deveriam ser capazes de: 1) conhecer e se apropriar da linguagem científica e 2) compreender aspectos da natureza do conhecimento científico.

A primeira depende, então, da aproximação e familiarização com a linguagem científica, considerando suas diversas variações (artigos, livros, figuras, etc.). Mortimer (1998) analisa em detalhes as diferenças entre a linguagem científica e a linguagem cotidiana, mostrando como a estrutura e estilo do texto científico é distante da linguagem que o aluno utiliza diariamente.

Vários autores que investigam a leitura e escrita científica têm desenvolvido estudos e intervenções nesse sentido (Queiroz, Cabral e Silva, 2017; Fatareli, Massi, Fereira e Queiroz, 2015; Oliveira, Porto e Queiroz, 2014). A segunda dimensão envolve um amplo conjunto de pesquisas sobre a Natureza da Ciência (ndc) ou nos (recuperando o termo bastante conhecido em inglês Nature of Science). Esses estudos destacam a importância desse componente no currículo e debatem sobre quais elementos são fundamentais nessa ampla temática, bem como de que forma eles poderiam ser inseridos no ensino de ciências (Hodson, 2014; Lederman, 2018; Matthews, 2012).

Embora essas duas dimensões sejam bastante exploradas nas pesquisas em ec, percebemos pouca preocupação em articulá-las. Nos perguntamos em que medida a própria linguagem científica canônica contribui para a manutenção ou ruptura com visões de ciência que refletem a forma como o conhecimento científico é produzido? Assim, entendemos que as ciências poderiam ser melhor exploradas no ensino e nas pesquisas se incluíssemos uma perspectiva integradora que articulasse a linguagem científica e a ndc. Nesse sentido, este artigo teórico pretende explorar essas relações a partir da contribuição da Análise do Discurso (AD) de linha francesa, que nos permite reconhecer os efeitos de sentido do texto científico, e das pesquisas recentes sobre ndc, que discutem aspectos fundamentais para o entendimento do processo de produção do conhecimento científico.

Inicialmente apresentaremos, de modo bastante resumido, as principais ideias dessas duas perspectivas teóricas para, em seguida, explorarmos algumas articulações entre a linguagem científica e a ndc.

Aspectos da natureza da ciência

A ndctem representado uma importante linha de pesquisas em ecalém de estar presente nas orientações curriculares há bastante tempo. Segundo Lederman (2018) a conceituação da Ndc foi discutida pela primeira vez em 1907 e surgiu como tema de pesquisa no final da década de 50. Ele destaca que o termo inicial "natureza do conhecimento científico" foi sendo resumido para "natureza da ciência" embora não tenha perdido essa acepção inicial. Este autor representa uma das principais contribuições nesse campo de estudos pois propôs um conjunto de aspectos que constituiriam a Ndc e desenvolveu questionários para investigar a visão de ciências, conhecidos pela sigla em inglês VNOS, que foram amplamente adotados nas pesquisas em EC. Os aspectos destacados por Lederman e seus colaboradores (2002), que ficaram conhecidos como Lederman Seven, incluem: a natureza empírica do conhecimento científico; a diferença entre leis e teorias científicas; a natureza criativa e imaginativa do conhecimento científico; o embasamento teórico da natureza do conhecimento científico; a imersão social e cultural do conhecimento científico; o mito do método científico; a natureza tentativa do conhecimento científico. Os latinos e brasileiros se aproximaram dessas discussões também pelos trabalhos de Daniel Gil-Pérez e colaboradores (2001) que apresentaram sete visões distorcidas do trabalho científico: empírico-inditivista e a teórica, rígida do método científico, a problemática e a histórica, exclusivamente analítica, acumulativa de crescimento linear, individualista e elitista e socialmente neutra. Eles também apontaram cinco características essenciais do trabalho científico, que nos parecem bastante próximas dos itens do Lederman Seven: pluralidade metodológica, recusa do empirismo puro, papel do pensamento divergente, procura de coerência global e caráter social do desenvolvimento do conhecimento científico.

Esse conjunto de ideias constitui o que ficou conhecido na área de pesquisa como a Consensus View ou visão consensual sobre a Ndc. Ao mesmo tempo que elas contribuíram para constituir e consolidar um conjunto de pesquisas sobre o tema, recentemente surgiram críticas à noção de "natureza da ciência" e ao reducionismo que essas listas implicam no ensino (Hodson, 2014; Adúriz-Bravo e Ariza, 2013; Matthews, 2012; Irzik e Nola, 2011; Allchin, 2011). Matthews (2012) é um dos principais críticos que propõe a substituição do termo natureza por características da ciência, ressaltando que elas não são capazes de definir e limitar a ciência, mas apenas destacar alguns de seus aspectos constitutivos. O autor aponta como grande problema da visão consensual a ideia de que o professor deveria ensinar diretamente os tópicos da lista, levando a uma memorização descontextualizada da Ndc. Além disso, ele destaca várias possibilidades de ampliação, sem limites definidos, da lista de características considerando contribuições mais aprofundadas da filosofia, epistemologia e sociologia da ciência. Outra crítica à lista é desenvolvida por Irzik e Nola (2011) quanto a falta de especificidade em relação ao domínio da ciência presente na visão consensual, em que química, física e biologia são tratadas como idênticas. A solução proposta pelos autores envolveria a ideia de uma abordagem de semelhança familiar em que as ciências seriam discutidas na sua especificidade reconhecendo eventuais proximidades entre elas. Hodson (2014) também critica a visão consensual em função dos seguintes limites dessas perspectivas: elas apresentam características que poderiam ser aplicadas a qualquer campo de conhecimento; produzem interpretações literais e simplistas de algumas afirmações que geram mais confusões que avanços (caráter tentativo, relação entre observação e teoria); desconsideram especificidades das ciências e levaram ao ensino dos "princípios da Ndc" de forma descontextualizada e mecânica. Ele também defende a mudança para o termo "Característica da Ciência" - embora adote o NOS no título do artigo possivelmente para destacar a continuidade desses estudos - e destaca alguns avanços atuais da Ndc em função das pesquisas da área sobre argumentação, modelos e modelagem e entende que as questões socio científicas representam um caminho fértil de desenvolvimento da Ndc, que pode contemplar aspectos atuais da ciência como a relação com o mercado.

Adúriz-Bravo e Ariza (2013) e Allchin (2011) defendem uma nova perspectiva para os estudos de Ndcque começaria a partir da discussão sobre seu objeto. Segundo Adúriz-Bravo e Ariza (2013), a natureza da ciência envolve três aspectos: 1) conhecimentos sobre o que é a ciência; 2) um elemento fundamental da alfabetização científica associado a atividade científica; 3) uma linha de pesquisa, inovação, docência e extensão. A alternativa para a visão consensual seria uma abordagem contextualizada de episódios históricos ou casos científicos que permitam compreender a natureza da ciência de modo articulado ao conhecimento científico, respeitando sua especificidade. Adúriz-Bravo e Ariza (2013) defendem que esse tipo de ensino poderia explorar: a relação entre o conhecimento científico e o mundo natural, as mudanças das teorias ao longo do tempo, os valores sustentados pela comunidade científica, as metodologias científicas e a representação do conhecimento científico por meio de uma linguagem elaborada. Os autores propõem uma rede campo-questão-ideia que representa uma forma mais rica de abordar questões de Ndc, envolvendo um aspecto (campo), uma questão derivada desse aspecto e uma ideia científica que concretiza esse aspecto. Uma proposta semelhante é a de Allchin (2011), denominada Whole Science em que estudos de caso científicos permitam a discussão de diversos aspectos sobre ciência de modo mais aprofundado.

Apresentamos sucintamente essa ampla discussão da área, porém com base na leitura cuidadosa dessas e de outras referências entendemos que é possível considerar alguns aspectos da visão consensual e, ao mesmo tempo, incorporar contribuições das novas perspectivas. Neste artigo, tentaremos desenvolver um exercício analítico em que a Ndc nos ajudará a interpretar os efeitos de sentido produzidos pelos textos científicos, como se a linguagem científica representasse um caso de estudo que será analisado com base nas contribuições desses autores.

Análise do discurso de linha francesa e o discurso científico

A AD vem sendo apropriadas pelas pesquisas em Ec através de suas várias linhas e perspectivas teóricas. No contexto brasileiro, uma revisão bibliográfica mapeou os referenciais teóricos de pesquisas que adotam a ADe identificou três autores em ordem de recorrência: Bakhtin, Orlandi e Bardin (Veneu, Ferraz e Rezende, 2015). Nossa linha se insere na perspectiva de Eni Orlandi, uma autora brasileira que traduziu e trouxe para o país os estudos de Michel Pechéux. Além deles, trazemos contribuições de Foucault que também se insere na linha francesa de AD. Ao contrário da Análise do Conteúdo, de Bardin, a AD entende que a linguagem não é neutra, portanto, o trabalho interpretativo com o texto não envolve apenas a apreensão direta e categorial de seu significado. A AD francesa trabalha com a noção de efeitos de sentido em que entendemos que uma palavra, uma imagem ou uma frase carregam sentidos que escapam às intengóes do autor do texto. O discurso é entendido no sentido de linguagem em movimento, "etimologicamente, tem em si a idéia [sic] de curso, de percurso, de correr por, de movimento", ou seja, o "discurso é assim palavra em movimento, pràtica de linguagem" (Orlandi, 2003, p. 15). Dessa forma, "servindo como ponte de ligagao entre a lingua e a sua exterioridade constitutiva, a AD afirma a associalo da linguagem à sociedade, ao contexto histórico no qual o sujeito està submetido" (Gregolin, 2000, p. 19).

Nesse contexto, ao analisar o discurso científico pretendemos trazer à tona as estratégias empregadas pelos cientistas para compor seus discursos, que nào scio claras ou perfeitamente delimitadas nem mesmo pelos agentes enunciadores, bem como revelar o modo como esses efeitos de sentido são produzidos e as contradições que esse discurso carrega. Para isso, nos baseamos na contribuição de alguns autores da AD que adotaram o discurso científico como objeto de investigação.

Alguns pressupostos gerais que merecem ser destacados incluem a percepção desses autores sobre o cientista e o papel do discurso científico na ciência. Concordamos com Coracini (1991, p. 190) "que o cientista, prisioneiro de sua formação, nem sempre tem consciência dos recursos linguísticos que utiliza nem daquilo que, em pragmàtica, se convencionou chamar de intencionalidade". Assim, a AD nos ajudarà a enxergar os dispositivos empregados inconscientemente pelo cientista para aplicar aos seus discursos uma atmosfera de objetividade, imparcialidade e veracidade. Em relagao à ciência, ela pode ser entendida, no contexto da AD, como um conjunto de regularidades (esquemas, modelos e normas) que caracterizam os discursos dessa àrea. Segundo Machado (2004, p. 152) a ciência envolve "uma certa organização do discurso, uma certa maneira de falar, argumentar, analisar, observar e validar conhecimentos". No mesmo sentido, em uma entrevista Foucault afirmou para Rouanet e Merquior (1971, pp. 34-35, grifo nosso) sobre a ciência e o cientista que:

A ciencia não tem normatividade nem funciona efetivamente como ciencia numa época dada, segundo um certo número de esquemas, modelos, valorizações e códigos, é um conjunto de discursos e práticas discursivas muito modestas, perfeitamente enfadonhas e cotidianas, que se repetem incessantemente. Existe um código desses discursos, existem normas para essas práticas, aos quais devem obedecer esses discursos e essas práticas. Não há razão para se orgulhar disso; e os cientistas - eu lhes asseguro - não tem nenhum orgulho particular em saber que o que fazem é ciencia. Eles [sic] o sabem, é tudo; e isto por uma espécie de comum acordo [sic], que é a comunidade do código, e a partir do qual podem dizer: 'Isso està provado, e aquilo não està'. E existem, lado a lado, outros tipos de discursos e pràticas, cuja importância para nossa sociedade e para nossa história independe do estatuto de ciencia que possam vir a receber.

Por fim, Possenti (2004) defende que o que define um discurso como sendo científico não é a veracidade desse enunciado (como costuma-se acreditar), massim o fato desse discurso estar inserido num determinado sistema de produgao determinado historicamente. Ele ilustra esse sistema de produgao com o exemplo da suposta descoberta da fusao a frio em que a verdade foi verificada através da reprodutibilidade, o que nao ocorre em outras àreas, mas também nao garante que o conhecimento seja verdadeiro.

Entendendo em linhas gerais como a AD analisa o discurso científico passamos a articular os efeitos de sentido produzidos pela linguagem científica tentando interpretar suas implicações em relagao à Ndc. Portanto, as seções seguintes estão organizadas a partir da cada aspecto discursivo que identificamos na ADe suas possíveis articulações com a Ndc.

A ausência de subjetividade e a dimensào humana do trabalho científico

No livro Filosofia da Ciencia Rubem Alves discute vàrios aspectos epistemológicos da ciencia e inclui algumas considerações sobre a linguagem científica. Merece destaque um trecho que ilustra claramente a preocupação do cientista com a ausência de subjetividade no seu texto:

No dia 13 de agosto de 1979, dia cinzento e triste, que me causou arrepios, fui para o meu laboratório, onde, por sinal, pendurei uma tela de Bruegel, um dos meus favoritos. Là, trabalhando com tripanossomas, e vencendo uma terrível dor de dentes...

Não. De saída tal artigo seria rejeitado, ainda que os resultados fossem soberbos. O estilo... O cientista não deve falar. E o objeto que deve falar por meio dele. Daí o estilo impessoal, vazio de emoções e valores:

Observa-se,

Constata-se,

Obtém-se,

Conclui-se.

Quem? Näo faz diferença...

(Alves, 1981, p. 149).

Essa característica do discurso científico é citada por diversos autores com uma das principais marcas da linguagem científica, evidenciada em todo texto no estilo impessoal, e no uso da terceira pessoa e da voz passiva. Mulkay (1991) esclarece que estäo rigorosamente excluídos do discurso científico as opiniões ou interesses do autor e que o uso da voz passiva impede que alusões a ações e decisões do autor apareçam no texto. Essas opiniões, agoes e decisões do autor, para Rubem Alves, poderiam ser traduzidas como as emoções do cientista e o trabalho com esse tipo de texto lhes dá a impressäo de que os cientistas "pensam de maneira diferente dos homens comuns" pois "seu único propósito é refletir o objeto. Näo deseja coisa alguma dele. A objetividade e a isengäo exigem isso. Afinal de contas um cientista tem de ser 'livre de valores' ... E sua ciencia dispoe de um método que torna possível um discurso totalmente fiel ao objeto, do qual o sujeito se ausentou." (Alves, 1981, pp. 149-150). O que caracteriza fundamentalmente o trabalho científico, segundo Granger1, é a progressiva estruturagäo da linguagem científica, o que significa, para ele, a progressiva eliminagäo do vivido enquanto representado na linguagem näo científica, evidentemente. Tal estruturagäo visa eliminar (ou diminuir ao máximo) a relagäo entre o sujeito produtor desse enunciado e o enunciado [...].

Quando mais essas características [vivido] se reduzem e mais se obtém uma linguagem estruturada, mais próximo se está do enunciado científico (isto é, do estilo do enunciado científico), vale dizer, do sistema de produção dos enunciados científicos (relembro: o que não significa enunciados 'mais' verdadeiros (Possenti, 2004, pp. 240-241).

Brandão (2004, p. 57) situa o discurso científico como análogo ao discurso do esquizofrénico pois em ambos "o locutor utiliza o ele para se referir a si mesmo" o que mostra um tipo de enunciação em que "o sujeito enuncia de outro lugar, postando-se numa outra perspectiva, seja a da impessoalidade em busca de uma objetivação dos fatos ou de um apagamento da responsabilidade pela enunciação, seja a da incapacidade patológica de assunção de um eu". Nesse sentido Mulkay (1991) também esclarece que esses dispositivos produzem uma atmosfera de anonimato, que dá a impressão de que a pesquisa poderia ter sido produzida por qualquer pessoa. Esse efeito parece recuperar a ideia de reprodutibilidade, destacada por Possenti (2004), que é possibilitada pela ausência do sujeito e pelo método científico. Michel Foucault (2003, pp. 137-138, grifo nosso) estabelece a relação entre a produção histórica e social desse sujeito e o conjunto de esquemas, modelos e normas que caracterizam os discursos científicos:

Se vocês leem Bacon, ou em todo caso, na tradição da filosofia empirista -não somente da filosofia empirista, mas finalmente da ciência experimental, da ciéncia da observação inglesa, a partir do fim do século xvi, e depois da francesa, etc. - nessa prática a ciéncia da observação, vocés tém um sujeito, de alguma forma neutro, sem preconceitos, que diante do mundo exterior é capaz de ver o que se passa, de captá-lo, de compará-lo. Esse tipo de sujeito, ao mesmo tempo vazio, neutro, que serve de ponto de convergéncia para todo mundo empírico, e que vai se tornar o sujeito enciclopédico do século xviii, como é que esse sujeito se formou? Será um sujeito natural? Será que todo homem pode fazer isso? Será preciso admitir que, se ele não o fez antes do século XV, no século XVI, foi somente porque tinha preconceitos, ou ilusões? Será que eram véus ideológicos que o impediam de dirigir esse olhar neutro e acolhedor sobre o mundo? [...] Eu lhes direi não, não me parece que uma análise assim seja suficiente. De fato, esse sujeito supostamente neutro é, ele pròprio, uma produção histórica. Foi preciso toda uma rede de instituições, de práticas, para chegar ao que constitui essa espécie de ponto ideal, de lugar, a partir do qual os homens deveriam pousar sobre o mundo um olhar de pura observação. No conjunto, parece-me que essa constituição histórica dessa forma de objetividade poderia ser encontrada nas práticas judiciárias, e em particular na prática da enquete.

Assim, a AD nos ajuda a identificar os principais efeitos de sentido associados à auséncia de subjetividade: um cientista neutro e um método científico que independa dos sujeitos. Esses dois aspectos são centrais nas discussões sobre Ndc, mostrando que na análise de situações concretas diferentes perspectivas sobre a ciência (sociológica, epistemológica, etc.) se complementam. Nesse caso reconhecemos o aspecto humano da produção do conhecimento científico, destacado por Allchin (2011) como um elemento importante da Ndc. Para o autor esse aspecto pode envolver dimensões como o espectro das motivagòes do cientista para fazer ciencia da sua personalidade na producào da ciencia. Na visào consensual esse elemento também aparece no sentido da ausência de valores políticos, religiosos, económicos do cientista que poderiam interferir no seu trabalho (Lederman et al., 2002). Além disso, as discussões sobre o método científico, que garantiria essa isencào, representam um dos pontos centrais da Ndc. Gil-Pérez e colaboradores (2001) discutiram sobre a ideia equivocada de que existiria um único "Método Científico", com letras maiúsculas, que se fosse seguido à risca, de forma rígida e exata, produziria resultados infalíveis e, podemos pensar também, à prova de subjetividades. Esses mesmos autores assim como Lederman e colaboradores (2002) criticam o "mito do método científico" e discutem que a ciencia adota métodos, mas que eles sào plurais e passíveis de revisões e questionamentos. Os autores das novas perspectivas de Ndc também destacam o método como um dos aspectos fundamentais da producào do conhecimento científico. Allchin (2011) exemplifica alguns pontos atuais que podem estar associados ao tema: experimentos controlados, estudos com duplo cego, erros em análises estatísticas, replicacelo e tamanho de amostras, correlacoes e causalidades. Existe uma preocupacào efetiva com a objetivida-de na producào do conhecimento científico, mas nào há uma suposicào de neutralidade. Popper (1945, pp. 205-206) afirma que a "objetividade da ciencia está estreitamente ligada ao caráter social do método científico" e adota a ideia de "objetividade institucional" para explicar que para a ciencia, mais importante do que ter um método infalível, é o caráter público desse método, ou seja, a possibilidade da comunidade científica conferir e validar o conhecimento produzido através da adocào de métodos comuns.

Se a AD nos ajuda a identificar esses pres-supostos que sustentam os efeitos de sentido associados à ausencia de subjetividade do discurso científico ela também nos permite questionar esse efeito através de análises discursivas que revelam a presenca do sujeito no texto a partir de dois mecanismos principais: a existencia de focos de subjetividade no nível do intradiscurso e a intencào argumentativa dos textos científicos.

Quanto aos focos de subjetividade observamos em todos os trabalhos preocupados com a questào da ausencia de subjetividade do discurso científico, a afirmacào de que o total apagamento do autor é impossível. Para Brandào (2004, pp. 57-58) "a subjetividade é inerente a toda linguagem e sua constituicào se dá mesmo quando nào se enuncia o eu", como discutimos anteriormente, ela defende que "essa estratégia de mascaramento é também uma forma outra de constituicào da subjetividade". De acordo com Possenti (2004, p. 240) existem pelo menos dois lugares de "irredutível presenca da subjetividade na producào científica": a formulacào de hipóteses e o trabalho científico. Ele exemplifica a presenca do sujeito na formulacào de hipóteses a partir do trabalho de Kekulé, que supostamente sonhou com uma cobra mordendo o próprio rabo e encontrou nessa imagem a resposta para a estrutura molecular do benzeno. Possenti (2004) defende que muitas outras pessoas poderiam ter o mesmo sonho, mas nào a mesma interpretacào, ou seja, a formulacào de hipóteses envolve uma série de aspectos próprios do sujeito. Com relacào ao trabalho científico, ele debate que "o discurso científico nào se dá" (Possenti, 2004, p. 240 - grifo do autor), e que todas as etapas do trabalho envolvem o sujeito, inclusive no trabalho de eliminação da subjetividade (do vivido).

Uma destas etapas do trabalho científico apontadas por Possenti (2004) poderia ser a etapa da elaboração dos resumos, citada por Coracini (1991). A pesquisadora realizou entrevistas com autores de artigos científicos (discurso científico primário - relato de experiencias) sobre as etapas da redação dos artigos e encontrou espaços nos quais, até mesmo os autores, assumiam suas "marcas" no texto. Na elaboração dos resumos, a ordem de importância dos itens (introdução, discussão, resultados...) aparecem no texto de acordo com um "julgamento subjetivo por excelência", não existem regras claras fornecidas pela comunidade ou por revistas científicas indicando a ordem de importância dos itens nos resumos.

Ainda sobre a presença do sujeito no trabalho científico, encontramos em Coracini (1991, pp. 125-129) a demarcação das etapas do trabalho científico em que se revela a presença do sujeito desvelada pela autora através da análise da "modalidade explícita" nos discursos científicos: "o enunciador assume sua pesquisa justificando a escolha do tema ou do material"; "o enunciador avalia a ocorrência de um fenómeno ou de um resultado com base nos dados (evidencia)"; "o enunciador opina sobre os fatos ou resultados obtidos, engajando-se mais ou menos com relação as asserções que realiza"; "o sujeito-enunciador avalia o trabalho e sugere novas pesquisas"; "o enunciador faz hipóteses, suposições"; "o sujeito-enunciador chama a atenção do seu interlocutor"; "o sujeito enunciador recomenda".

Ao analisar um artigo científico Dota (2003) revela a presença do autor no texto por meio da utilização de alguns recursos linguísticos mais frequentes no inglês, mas que também observamos em textos em português como: tempos verbais na voz passiva: "Foi descoberto que as..."; utilização de verbos subjetivos: "Deveserenfatizada..."; uso de advérbios: "Aproximadamente", "aparentemente"; uso de adjetivos avaliativos: "com o uso de poderosos métodos de regressão".Campanario (2004), ao analisar artigos científicos, também encontrou fendas no discurso científico por onde flui a subjetividade, embora nestes casos a subjetividade esteja muito mais exposta do que na análise de Dota, realizada apenas com base em aspectos linguísticos. Por meio de exemplos retirados dos artigos, ele mostra que os autores: expressam opinião sobre as dificuldades encontradas ou sobre possíveis interpretações a serem consideradas; admitem ignorância sobre determinado assunto ou reconhecem problemas ou limitações nos procedimentos; utilizam expressões que denotam dúvida ou incerteza. O autor defende que estas opiniões e incertezas fortalecem a argumentação ao invés de enfraquecê-la quando sugere, mas não impõe, as conclusões, como forma mais provável de explicar os resultados obtidos.

Ainda sobre este tema, em uma das entrevistas realizadas por Coracini (1991, p. 130, grifo nosso), um dos "informantes" relatou que "não é permitido ao pesquisador nem expressar afetividade com relação ao seu objeto de pesquisa (que de tanto estudar, o dentista acaba amando), nem ao menos afirmar categoricamente as próprias conclusòes". Dai o uso das palavras exemplificadas acima, qualificadas pela autora como "modais". Esse relato aponta para a questào da responsabilidade sobre o que o cientista diz, ao afirmar categoricamente sua concluselo, que também foi citado por Brandào (2004).

Outro foco de subjetividade do discurso científico é o fato de que ele é um discurso argumentativo, um "fazer persuasivo", assim como o discurso jurídico e politico (Coracini, 1991). Assim como no uso de modalidades que relativizam as assertivas dos cientistas ao mesmo tempo que lhes confere credibilidade, a subjetividade do discurso científico pode ser revelada por meio das estratégias argumentativas empregadas na produto científica com o intuito de convencer o leitor. Coracini (1991, p. 41) estabelece comparacòes entre o discurso científico primàrio e o discurso político, com base numa "vídeo argumentativa e, portanto, subjetiva da ciencia e da politica, enquanto atividades humanas". A autora se baseia no fato de que "ambos os discursos seo altamente argumentativos na medida em que pretendem convencer o interlocutor da validade do que dizem e procedem retórica e linguisticamente de acordo com esse objetivo" (Coracini, 1991, p. 41). Além de convencer a própria comunidade cientifica, visando uma "objetividade institucional" através da validaceo dos métodos cientificos de modo intersubjetivo, como destacado por Popper (1945). Allchin (2011) destaca que um aspecto importante da producào do conhecimento científico é o financiamento das pesquisas. Portanto, entendemos que a persuasão tem funcào interna no desenvolvimento da ciencia e externa no sentido do seu fomento. A producào da ciencia envolve interesses económicos desde a proposto de um projeto de pesquisa até a divulgacào dos resultados que sustentariam novos pedidos. Um caso histórico clàssico da fusào à frio, citado anteriormente neste texto, é bastante ilustrativo quanto aos interesses económicos influenciando a producào da ciencia e o papel dos textos e da linguagem cientifica nesse processo (Collins e Pinch, 2003).

Nesse primeiro exercício analitico fica claro que a linguagem tanto contribui para a producào de efeitos de sentido que sustentam visões distorcidas de ciencia, como para a neutralidade e rigidez do método cientifico. Ela também pode ser usada para desmascarar a presença do sujeito no texto, no nível do intradiscurso, como para mostrar as estratégias argumentativas empregadas pelo cientista na producào dessa linguagem supostamente neutra.

A ¡nterdiccio à interpretacào e aspectos comunicativos, históricos e criativos do processo de producào do conhecimento científico

O discurso cientifico se caracteriza pela estabilizacào dos sentidos que tendem a restringir as possibilidades interpretativas quando comparado a outras formações discursivas - por exemplo, a literària. Pêcheux (1990, pp. 3031) explica esse processo de estabilizacào que tende a interditar a interpretacào no domínio das matemáticas e ciências da natureza:

Esses espaços - através dos quais se encontram estabelecidos (enquanto agentes e garantia dessas últimas operações) detentores de saber, especialistas e responsáveis de diversas ordens - repousam, em seu funcionamento discursivo interno, sobre uma proibicào de interpretacào, implicando o uso regulado de proposições lógicas (Verdadeiro ou Falso) com interrogações disjuntivas ('o estado de coisas' é A ou nào-A?) e, correlativamente, a recusa de certas marcas de distancia discursiva do tipo 'em certo sentido', 'se se desejar', 'se podemos dizer', 'em um grau extremo', 'dizendo mais propriamente', etc. (e, em particular, a recusa de quaisquer aspas de natureza interpretativa, que deslocariam as categorizagòes; por exemplo, o enunciado: 'Fulano é muito 'militar' no civil', enunciado que é, aliás, perfeitamente dotado de sentido).

Assim como Pecheux (1990), Possenti (2004, p. 248) afirma que esse efeito de univocidade depende de certa repressào das idiossincrasias do leitor, o que é ilustrado pelo seguinte exemplo: "Se um estudante de geometria ler a palavra 'ponto' e teimar em pensar em teatro, a palavra 'ponto' deixará de ser precisa no interior do discurso da geometria". Assim, o gesto interpretativo no discurso científico nos parece ser condicionado por algumas estratégias que caracterizam esse discurso: 1) conducào da leitura do texto; 2) uso de linguagem clara e objetiva; 3) normatizagào da apresentacào textual.

A conducào da leitura do texto pode ser observada no nível intradiscursivo através das orientacòes do autor quanto à forma de interpretacào do conteúdo científico do texto, como ilustra Campanario (2004, p. 369 - traducào nossa) através dos seguintes exemplos: "Compare em primeiro lugar as tabelas II e IV..."; "O primeiro fator que devemos prestar atencào é...". Ele afirma que esse tipo de instrucào revela um caráter interativo do discurso "com enfoque à serviço da necessidade de convencer o leitor", reiterando o aspecto persuasivo do discurso científico destacado por Coracini (1991). Dall'Aglio-Hattnher e Pezatti (2005, p. 4) complementam essa discussào destacando o papel das negativas em textos científicos, em que "preocupado em evitar um raciocínio que poderia ser derivado de sua afirmacào (e que o falante supòe que o ouvinte faria), o falante se apressa em negar esse conteúdo pressuposto." Outro aspecto da conducào da leitura pode ser evidenciado a partir da análise de Possenti (2004) sobre a relacào entre o léxico e a regras de combinacào entre as palavras. Conforme o autor, no discurso científico:

(. . .) as regras de combinacào ou boa formacào sào mais importantes que o léxico (. . .) Um determinado léxico é uma das pistas que indicam quais sào as entidades postuladas numa determinada teoria (neutrino, quark, neurònio, quelicera, alcalòide, hidreto, fonema etc.). Mas, a diferenga fundamental entre duas teorias pode ser a compatibilidade, para uma, e a incompatibilidade, para outra, de determinadas combinacòes entre palavras, vale dizer, o fulcro da relacào entre linguagem e conhecimento pode estar na sintaxe e na semântica da linguagem utilizada - nos enunciados, mais que nas palavras." (Possenti, 2004, pp. 246-247).

O autor exemplifica sua colocacào com as sentencas "O Sol gira ao redor da Terra" ou "A Terra gira ao redor do Sol", marcantes no episòdio histórico da passagem do geocentrismo para o heliocentrismo, protagonizada por Galileu. Elas mostram a importância da combinacào das palavras na ciencia e quanto essa combinação evidencia a adesão dos textos científicos a determinadas teorias.

Entendemos que essa primeira dimensão da ¡interdição á interpretado, caracterizada por diversas estratégias discursivas e efeitos de sentido de condução da leitura do texto, apontam indiretamente para a falsa ideia de ausência de criatividade no trabalho científico assim como a ausência da perspectiva interpretativa. Este aspecto surge nas discussões de Lederman e colaboradores (2002, p. 500) como "a natureza criativa e imaginativa do conhecimento científico" em que se destaca que, ao contrario do que é veiculado no senso comum, a atividade científica não é puramente racional, ordenada e desvinculada da vida. Os autores exemplificam o caráter criativo e imaginativo do conhecimento científico com o modelo de Bohr e seu avanço em relação á noção de linhas espectrais atómicas. Esse aspecto é bastante discutido nas novas perspectivas de Ndc pois, da forma como é abordado na visão consensual, a imaginação e criatividade são dissociadas de contextos específicos de produção do conhecimento científico. Allchin (2011) e Hodson (2014) contextualizam esses aspectos na historia da ciencia e em casos concretos que permitem compreender o papel da imaginação e criatividade na produção de sínteses de conhecimentos científicos isolados, na articulação com os métodos científicos existentes e padronizados, bem como na fundamentação empírica e teórica que as sustenta. Extrapolamos essas discussões para inferir que a interdição á interpretação do discurso científico produz um efeito de sentido de ausência de criatividade e imaginação na produção do conhecimento científico.

Uma segunda dimensão da interdição á interpretação se caracteriza pelo uso de linguagem clara e objetiva. Essa discussão depende, inicialmente, de um entendimento do que seria essa clareza e objetividade.

Possenti (2004, p. 248) considera simplista a ideia de que "as palavras usadas pelos físicos sào transparentes e unívocas e as usadas pelos historiadores sào opacas e polissêmicas". Ele defende que a propalada precisào da linguagem científica nào é uma propriedade da linguagem desses campos é, na verdade, um efeito de dois fatos: "um trabalho històrico de desideologizacào do campo" e "um treinamento peculiar do cientista" (Possenti, 2004, p. 248).

Possenti (2004, p. 248) afirma que "o trabalho de desideologizacào faz com que a aceitacào de termos técnicos 'convencionados' se faca sem disputas maiores" e isso ocorre como consequência de um longo trabalho històrico, as palavras tem uma leitura unívoca. Além disso, para ele, a traducào em linguagem matemática dos enunciados das ciências da natureza garante essa leitura unívoca dos enunciados por leitores diferentes. Podemos nos referir a esse treinamento e cristalizacào dos sentidos pela ideia do jargào da área. O domínio deste jargào é tào importante que se apresenta como um dos motivos pelos quais os alunos apresentam tantas dificuldades de entendimento nas disciplinas de ciências, o que encontramos em colocacòes como: "no caso da física, uma característica da sua producào já há longo tempo é a linguagem formal específica, e essa característica é comumente vista como uma barreira pelos que iniciam seu estudo" (Almeida e Queiroz, 1997). Ainda sobre o treinamento do cientista, Possenti (2004) acrescenta que "parece evidente que ele [treinamento] implica num processo de subjetivacào e produz como efeito um assujeitamento às regras do discurso de um grupo institucional".

Assim, a linguagem clara e objetiva na verdade se refere à adocào de palavras com sentidos unívocos resultantes de um processo històrico de disputa em relacào aos seus significados construídos coletivamente. Em relagào a essa segunda dimensào da interdigào à interpretagào, que parece ser construída a partir da cristalízamelo de sentidos de algumas palavras características de determinadas áreas de pesquisa, entendemos que, ao invés de contribuir para ideias inadequadas do que seria o trabalho do cientista como nos aspectos anteriores, esse efeito histórico e especifico de cristalização revela pontos importantes sobre a produção do conhecimento científico através da linguagem. Assim, ao mesmo tempo que a densidade léxica do texto científico pode afastar o leitor não especialista e dificultar o ensino de ciências, caso não seja objeto de discussão (Mortimer, 2002), ela revela aspectos fundamentais do processo de produção do conhecimento científico.

A visão consensual de Ndc destacou o papel da história na produção da ciencia ao enfatizar a importância do pensamento divergente, do caráter tentativo, das rupturas de paradigmas científicos e dos esforços na procura da coerência global (Lederman et al., 2002; Gil-Pérez et al., 2001). As novas contribuíeis nesse campo destacam a especificidade das áreas da ciencia que não eram contempladas pela visão consensual (Irzik e Nola, 2011), mas que podem ser discutidas a partir dos termos científicos específicos de cada área que condensam o trabalho histórico de disputa e definições conceituais. Uma ideia simples na química, como a combustão, ilustra esse trabalho histórico ao recuperar o trabalho de Priestley e Lavoisier para abandonar a ideia de que existiria um flogisto que participaria da reação de combustão. As mudancas de terminologia mais recentes, como o abandono das pontes de hidrogenio pelas ligacóes de hidrogenio, também ilustram esse processo de cristalização de sentidos e interdição à interpretação. Entendemos que as palavras podem servir como casos que, abordados em uma perspectiva contextualizada e histórica, como proposto por Adúriz-Bravo e Ariza (2013) e Allchin (2011) podem contribuir significativamente para a EC.

Por fim, a terceira dimensão da interdição à interpretação se concretiza na normatização da apresentação textual, evidenciada tanto pela padronização rígida da estrutura do texto quanto pela utilização de gráficos, tabelas e dados estatísticos. Quanto ao primeiro aspecto nos referimos ao fato de que em artigos, projetos, relatórios e trabalhos enviados para congressos o texto científico é, na maioria das vezes, formulado de acordo com os parâmetros das organizações responsáveis pelo texto - revistas, agencias de fomento, organizadores de congressos. Em alguns casos o texto não tem regras de organização estipuladas, no entanto, observamos que muitos autores continuam seguindo o padrão de estruturação, mantendo o texto fiel às exigências da comunidade científica, e subdivididos em: resumo, introdução, justificativa, materiais e métodos, resultados e discussões. Além das subdivisões, muitas vezes o autor encontra restrições quanto ao número de caracteres, palavras ou páginas do texto. Coracini (1991, p. 62) aponta que essa padronização significa que "o cientista, se quiser ver aceito o seu trabalho, terá de se submeter aos 'grilhões do formalismo' (. . .), indicando bem a ausência de liberdade formal do cientista no momento de elaboração do seu artigo".

Coracini (1991) acredita que os cientistas apresentam certa dificuldade em respeitar o esquema formal canónico, ela justifica sua ideia com base no argumento de que é comum encontrar textos científicos com outras subdivisões conceituais ou temáticas. Além disso, a autora observa uma certa imprecisão em relação ao conteúdo dessas seções, reconhecendo, por meio de entrevistas, que "tais 'desvios' são de ordem metodológica (valorização da pesquisa em si) e ilocucionária (valorização do público-leitor), no sentido de 'tornar clara a apresentação e facilitar a leitura'" (Coracini, 1991, p. 63). Esses desvios representam outra marca de subjetividade do texto científico, como as discutidas anteriormente. Outra questão levantada por Coracini (1991, p. 70), como prova de que os textos da ciencia não são sempre relatos fidedignos das experiencias realizadas, é que esta organização textual não segue a ordem de realização das etapas da pesquisa, destacando a partir das entrevistas que o resumo, embora apareça primeiro, costume ser a última parte do texto produzida pelos autores:

(. . .) das diferenças básicas entre os dois processos - investigação científica e o texto propriamente dito: este se apresenta numa ordem linear, levando o leitor a crer que a investigação científica seguiu a ordem (determinação dos objetivos, material, relato de experiencia, resultados, discussão e conclusão), quando se sabe, por testemunho dos próprios cientistas, que a atividade de pesquisa não consegue pôr em prática, com fidelidade total ao modelo, nenhum método de investigação. (. . .) Além disso, o texto resultante ilude o leitor quanto as etapas de redação propriamente ditas: esta não obedece de forma alguma, a ordem lógica e linear das etapas apresentadas pelo texto.

Richard P. Feynman, premio Nobel de Física de 1965, em seu discurso reconheceu a diferença entre a ordem do texto no trabalho final e os diferentes caminhos percorridos até está definição. Ele afirmou que ao escrever artigos, os cientistas costumam apresentar a pesquisa da forma mais pronta possível, ocultando todos os caminhos e tentativas percorridas, e que nenhuma revista científica aceitaria um artigo que apresentasse esse tipo de informação (Feynman, 1965). Seu comentário nos remete à citação de Rubem Alves apresentada anteriormente.

A utilização de gráficos, tabelas e dados estatísticos é outra característica marcante dos textos científicos, e geralmente atribui-se o emprego dessas formas a trabalhos bem apresentados e de qualidade. Não é exigência que os textos científicos apresentem gráficos e tabelas, no entanto veicula-se a ideia de que a utilização destes recursos é aconselhável. Em sua pesquisa com autores de artigos científicos, Coracini (1991), obteve de seus informantes justificativas para o emprego desta forma de apresentação dos dados que remetiam à concisão e limites quanto ao tamanho do texto que favoreciam o uso dessas figuras que condensam informações e ao aspecto didático desses recursos para os leitores.

Levando em conta esses dois aspectos da normatização da apresentação textual, consideramos que a AD nos permitiu identificar efeitos de sentido que remetem a existência de uma suposta sequência rígida e padronizada de produção do conhecimento científico, bem como a figuras que condensam informações apresentando-as de modo objetivo. Entendemos que esses dois aspectos remetem à existência de um "Método Científico" rígido, exato e infalível, bastante presente nas discussões de Ndc, mas que não costumam reconhecer na linguagem mais uma forma de perpetuação dessa visão reducionista do processo de produção do conhecimento científico. Não acreditamos que os cientistas devam romper com essa estrutura no sentido de minimizar a presenta desse equívoco, principalmente porque entendemos que os sentidos escapam ao sujeito e não é possível controlar as diferentes interpretações que o texto científico pode provocar; por outro lado, pretendemos destacar um aspectos que nos parece significativo para que essa visão seja tão presente nas pesquisas sobre Ndc (Gil-Pérez et al., 2001; Lederman et al., 2002). Discussões mais recentes de Ndc, como os trabalhos de Allchin (2011) destacam o papel da comunicação e transmissão do conhecimento científico como um elemento importante a ser trabalhado de forma histórica e contextualizada para discutir Ndc. Para Allchin (2011, p. 525 - tradução nossa) as discussões sobre esse tema podem envolver diversos aspectos como as normas de apresentação dos dados científicos, natureza dos gráficos, credibilidade de diversas revistas científicas e mídias, fraudes ou outras formas de conduta antiética e a responsabilidade social dos cientistas. Esses aspectos estão presentes no exemplo citado anteriormente da fusão a frio (Collins e Pinch, 2003), que envolveu diferentes formas de comunicação científica - desde os tradicionais projetos de pesquisa e artigos científicos até entrevistas na televisão e publicação de notas curtas em revistas científicas - como ilustrativo do papel da comunicação, das diferenças de formatos e normatizações presentes nesses textos científicos, como fundamentais para análise de episódios históricos que remetem a discussão sobre Ndc.

A intertextualidade explícita e o caráter coletivo do trabalho do cientista

Dall'Aglio-Hattnher e Pezatti (2005) caracterizaram o discurso científico como fundamentado em uma argumentação baseada em fatos, evidencias e em pesquisas anteriores apresentadas pelo uso de citações. Para Coracini (1991), no discurso científico está presente uma heterogeneidade evidenciada explicitamente pelas citações e referencias a outros pesquisadores. Assumindo um dos conceitos fundamentais da AD, traduzimos estas colocações como indicadoras da intertextualidade explícita do texto científico.

Segundo Coracini (1991), as citações dos textos científicos podem cumprir diferentes objetivos: justificar o tema da pesquisa, seja porque as pesquisas sobre o tema são insuficientes, seja porque as pesquisas anteriores consideram outros aspectos do objeto de pesquisa atual; justificar o método e a técnica utilizada, com base na ideia de que se outros já fizeram e obtiveram sucesso por que não aplicá-los novamente (noção aceita pela comunidade científica)?; confirmar as próprias observações, resultados e conclusões, como discutido anteriormente, o cientista precisa se apoiar em pesquisas anteriores para se sentir "autorizado" a comunicar suas impressões; discutir a bibliografia lida e/ou se opor a ela justificando tal oposição, o que, segundo a autora, é aplicado pelo cientista com a função de "valorizar a própria pesquisa". Acreditamos que o uso das citações também pode remeter, indiretamente, a ideia de reprodutibilidade, em que, caso outro autor utilizasse as mesmas referencias e metodologias de pesquisa, chegaria às mesmas conclusões. Além disso, o uso se constituí em uma estratégia a favor da credibilidade e do conceito de cientificidade (Coracini, 1991, p. 170):

(. . .) se um certo número de referencias tidas como fundamentais no âmbito da especialidade não se encontram no texto, o leitor poderá concluir que o autor (pesquisador) está mal informado e que, portanto, suas palavras são pouco dignas de crédito, e sua pesquisa pouco interessante. Do mesmo modo, um número muito restrito de citações pode levar à concluir que o pesquisador desconhece as fontes de informação que a comunidade científica reputa como relevantes, dados estes que seriam indispensáveis para a valorização do seu texto e consequente força persuasiva.

É interessante perceber como este instrumento de validação, que confere autoridade ao discurso é uma estratégia que durante muito tempo foi empregada como uma forma de estabelecer a verdade. Foucault (2003) mostra que nas universidades medievais, o saber era manifestado, transmitido e autenticado em um tipo de ritual denominado disputatio, que consistia no afrontamento verbal de dois adversários apoiados nos processos retóricos e no apelo à autoridade.

Na disputatio, quanto mais autores um dos participantes tivesse a seu lado, quanto mais pudesse invocar testemunhos de autoridade, de força, de gravidade, e não testemunhos de verdade, maior possibilidade ele teria de sair vencedor. (. . .) Ter visto, ter lido os textos; saber o que efetivamente foi dito; conhecer tão bem o que foi dito, quanto a natureza a respeito da qual algo foi dito; verificar o que os autores não mais como autoridade mas como testemunho; tudo isto vai constituir uma das grandes revoluções na forma de transmissão do saber". (Foucault, 2003, pp. 76-77).

Ao contràrio de visões despersonalizadas da produção do conhecimento (Allchin, 2011) e da ideia de que o cientista é um gènio que trabalha isolado (Gil-Pérez et al., 2001; Lederman et al., 2002), essa característica do discurso científico aponta diretamente para o caràter coletivo da produção da ciència. Assim, novamente acreditamos que uma anàlise cuidadosa do texto científico pode contribuir para apresentar aos estudantes uma percepção mais adequada do trabalho científico destacando a presença e contribuição de diferentes pesquisadores para a proposição e validação de uma pesquisa. Segundo Allchin (2011), as interações sociais entre cientistas são um aspecto fundamental de discussão sobre a Ndc e podem promover percepções sobre as colaborações ou competições entre eles, assim como formas de persuasão e credibilidade, limites e críticas de perspectivas teóricas e divergèncias. O destaque e problematização das citações no texto científico, como marca de sua intertextualidade explícita, permitiria analisar essas relações e romper com a ideia de que a ciència poderia ser produzida fora de um contexto social interno do campo científico.

Conclusões

Neste trabalho apresentamos algumas características fundamentais do discurso científico que se revelam bastante entremeadas: ausència de subjetividade, interdigao à interpretagao e intertextualidade explícita. Tentamos associar essas características à aspectos da Ndc como: domínio humano da produgao da ciència; criatividade; aspectos comunicativos e históricos; interagoes sociais entre cientistas; especificidades das àreas da ciència. Acreditamos que essa proximidade entre discussoes sobre o discurso científico e os aspectos de Ndcque ele revela foi frutífera e possibilitada pelos pressupostos da AD, como exemplificado por Pechèux (1995, pp. 197-198)

A ideia de que a produgào de conhecimentos consistiria no puro e simples desenvolvimento (empírico-dedutivo) das propriedades dos objetos é, pois, um mito idealista, que identifica ciència e lógica e, ao colocar esta última como princípio de toda ciència, concebe inelutavelmente a pràtica científica como uma atividade de triagem entre enunciados verdadeiros e falsos, repelindo tudo o que diz respeito às condigòes próprias de aparigào desses enunciados, isto é, às questões que lhes sào correspondentes no interior de uma problemática historicamente determinada. O processo da produgào dos conhecimentos està, pois, indissociavelmente ligado a uma luta a propósito de nomes e de expressóes para aquilo que eles designam (eletricidade/eletricidade positiva/ negativa/ eletricidade animal; velocidade limite na mecânica relativista; ar flogísticizado; sequència que converge o mais lentamente, etc.) e a propósito da formulando de questóes: o mito da 'neutralidade científica', da suposta indiferenga como respeito às palavras e da intertradutibilidade das questòes para além dos confrontos (reduzidos a polèmicas ou a controvérsias) mascara, na verdade, o fato de que a objetividade científica é indissociàvel de uma tomada de posigdo materialista, para a qual nào hà jamais que a 'experiència' sirva para exibir a 'boa' problemàtica. Isso significa reconhecer a confusào entre a 'linguagem pràtica' (. . .) e a 'linguagem da ciència'...

Na raiz dessa confusào està, finalmente, a ideia de que existe um discurso da ciencia, isto é, um discurso do sujeito e da ciencia, cuja característica seria a de que esse sujeito està apagado nela, isto é, 'presente pela ausència', exatamente como Deus sobre esta terra no discurso religioso.

O único meio de esclarecer essa confusào é reconhecer que nào hà 'discurso da ciència' (nem mesmo, a rigor, 'discurso de uma ciència') porque todo discurso é discurso de um sujeito - nào, obviamente, no sentido behaviorista de 'comportamento discursivo de um indivíduo concreto', mas entendendo que todo discurso funciona com relagào à forma-sujeito, ao passo que o processo de conhecimento é um 'processo sem sujeito'.

Acreditamos que este tipo de anàlise ilustra que a linguagem científica condensa elementos que contribuem tanto para ratificar visòes distorcidas quanto para retificà-las. Entendemos que o trabalho com textos científicos em aulas de cièncias representa entào um caminho possível para aproximar os alunos da linguagem científica ao mesmo tempo em que os processos de produgào do conhecimento científico podem ser problematizados.