Um texto cheio de práticas contraditórias: performances e metodologias para abranger os assuntos de gênero no fazer artístico
A Text Full of Contradictory Practices: Performances and Methodologies to Include Gender Issues in Artistic Creation
Un texto lleno de prácticas contradictorias: performances y metodologías para abarcar los asuntos de género en la creación artística
Resumo
Este artigo, uma interseção entre revisão bibliográfica e pesquisa ação, aponta perspectivas metodológicas para o trabalho com dança/performance a partir da compreensão de que a pesquisa em artes, sobretudo no âmbito universitário, demanda metodologias específicas que precisam ser olhadas com mais atenção. Este trabalho está dedicado a professores e estudantes que encontram as suas próprias metodologias no exercício do fazer, as quais frequentemente não se adequam a parâmetros exclusivamente quantitativos ou qualitativos. Assim, a partir da InvestiCriação, da Pesquisa Performativa e da Crítica Genética, proponho um olhar sobre o fazer artístico a partir de reflexões sobre a arte e a experiência compartilhada em sala de aula, na construção de performances e metodologias que têm como tema os assuntos de gênero.
Palavras-chave:
gênero, dança, performance, metodologia, pesquisa.Abstract
This article, a mix between bibliographic review and action research. aims at methodological perspectives for work with Dance/Performance from the understanding that research in the arts, especially at the university level, requires specific methodologies that need to be looked at with more attention. This work is dedicated to teachers and students who find in the exercise of making, their methodologies that often do not fit exclusively quantitative or qualitative parameters. Therefore, from InvestiCreation, a Performative Research, and Genetic Criticism, I propose a look at artistic making from reflections on art and the shared experience in the room, in the construction of performances and methodologies that have as their subject the subjects of gender.
Keywords:
gender, dance, performance, methodology, research.Resumen
Este artículo señala las perspectivas metodológicas para el trabajo con danza/performance desde el entendimiento de que la investigación en las artes, especialmente a nivel universitario, exige metodologías específicas que deben analizarse con más cuidado. Este trabajo está dedicado a los maestros y estudiantes que encuentran sus propias metodologías en el ejercicio de lo que hacen, las cuales a veces no se ajustan exclusivamente a parámetros cuantitativos o cualitativos. Por lo tanto, desde la InvestiCreación, la Investigación Performativa y la Crítica Genética, propongo una mirada a la creación artística basada en reflexiones sobre el arte y la experiencia compartida en clase, en la construcción de performances y metodologías que tienen como tema las cuestiones de género.
Palabras clave:
género, danza, performance, metodología, investigación.Introdução
Para começar, é preciso dizer que esse é um texto cheio de práticas contraditórias e que a metodologia que me interessa é aquela que se manifesta no próprio fazer. É preciso dizer também que vou estranhar ao máximo possível essa forma inflacionada, desgastada e mofada da escrita acadêmica, formatada para caber em gavetas que separam o cu das cuecas e das calçolas. Portanto, você vai encontrar algumas palavras escritas, em alguns ligares, de forma indefinida de gênero. Não foi possível manter essa defesa em todo o texto por dois motivos: o primeiro foi para que você não desista de ler e vá se acostumando com a indefinição de gênero, e o outro porque não é uma tarefa fácil desconstruir a lógica do pensamento e eu ainda estou tentando porque acho muito importante.
Não tenho o menor interesse em explicar nada, ainda que a escrita se proponha a isso em alguma medida, o meu interesse é bagunçar as gavetas. Misturar calçolas e cuecas e arrebanhar um bando de gente nua que assim como eu, tem o corpo como o próprio fazer, a própria comunicação e não guarda nada dentro dele porque não somos gavetas, não somos veículo de nada e não somos baú para guardar segredos inconfessáveis de ninguém.
Agora que ninguém pode dizer que não foi avisade, posso dizer que compartilhamos o seguinte interesse: o fortalecimento da prática como pesquisa, discutindo gênero em processos criativos a partir de metodologias surgidas do fazer em dança/performance. É desse lugar de fala que aponto o fazer enquanto dúvida incessante em constante questionamento sobre os agenciamentos do corpo. São perguntas e colocações abertas e passíveis de desdobramentos, críticas e refazeres. A dança da qual trato aqui não se pretende bela, ela é no mínimo estranha! Não tem nenhuma virtuosidade comum, mas é virtuosa! Não é linear, ela é fragmentada! não tem começo, meio e nem fim, ela é sobreposta! E não vai te fazer terminar esse texto de forma acomodada, porque não estou acomodado. A minha acomodação significaria a permissão do atropelo normativo que mata diariamente os divergentes das normas de gênero. Então meu bem, não ache que você sairá desse texto ilese.
A partir da produção de subjetividades no fazer artístico, a dança engaja-se politicamente no corpo e em seu discurso, mobilizando de uma só vez corpo/discurso/ação. No movimento desses assuntos, abordarei noções sobre os estudos queer em autores como Sara Salih, João Manuel de Oliveira, Saez e Carrascosa. Trarei noções a respeito da Pesquisa Performativa a partir de Brad Haseman, Ciane Fernandes, da InvestiCriação por Pablo Parga e contribuições a partir das obras de Cecília Salles, Carlos Mendonça e Luigi Pareyson.
Nas primeiras ameaças desse texto, disse que o meu interesse é enfatizar a prática como pesquisa. Esse interesse implica em evidenciar o modo pelo qual as minhas práticas artísticas existem de forma embaralhada1 e como o próprio fazer determina a metodologia necessária para a existência das minhas danças/performances. Isso não implica dizer que não há método! Ele existe enquanto projeto e elaboração de um tipo de pensamento que é anterior ao pensamento no momento do fazer.
Quero dizer com isso, que os projetos de elaboração guiados pela prática em dança/performance, possuem um a priori que se determina do mesmo modo que qualquer outro projeto com desejos, objetivos, métodos e justificativas. Para não te dar a chance nem de longe de você ficar achando que a minha balbúrdia é qualquer coisa, vou te falar um pouco sobre o que diz Luigi
No capítulo nove sobre o Processo artístico, o autor lança uma pergunta: qual é a lei da arte? A partir dessa pergunta Pareyson apresenta uma das insistentes respostas que atravessaram séculos como, a imitação da natureza! A reflexão sobre essa resposta nos diz que esse parâmetro reducionista a que a arte foi submetida por muito tempo, não permitia o cumprimento das "leis imanentes à atividade artística" (Pareyson, 1989, p. 181), restando apenas o papel de atender a gostos prescritos.
A beleza foi outra resposta secular estabelecida como lei da arte até o romantismo, fosse pela imitação ou pela harmonia e proporção das formas. Neste mesmo período ocorre uma mudança de perspectiva e a beleza não era mais tida como lei, mas como resultado da arte. A beleza, portanto, não seria objeto nem fim. A beleza da obra de arte seria o efeito e o seu êxito.
Ora, vejamos, o que Pareyson comenta é que
No fundo, isto significa que não existe uma lei geral da arte: só há a inventividade e a originalidade do artista, isto é, coisas que ou existem ou não existem, e que nem se pode prescrever, nem recomendar, nem considerar como leis da arte. (Pareyson, 1989, pp. 181-182).
Com essa breve colocação já podemos refletir conjuntamente para entender que possivelmente, a dança/performance ainda esteja submetida a essas datadas objetificações, sobretudo ao critério do belo. É muito comum hoje em dia que a plateia da dança/performance ainda teça comentários em busca pela harmonia dos corpos em cena, principalmente no que se refere a uma obra que tenha como princípio, a técnica clássica ou moderna. Por outro lado, também podemos nos perguntar: qual seria o efeito e o êxito esperado da dança/performance quando os cânones românticos ainda são vigentes? Em que implica esse desejo latente pela busca da beleza? Seria uma resposta, a abjeção pelos corpos diversos?
Pareyson chama atenção que a obra artística não é privada de lei, para que não se corra o risco arbitrário de confundir liberdade com libertinagem. Essa afirmação se dá pelo fato de entender que o processo artístico é crivado de rigor e severidade que legalizam o labor do artista, não permitindo que a produção em arte seja entendida de forma cega e incontrolada, privada de valor e insusceptível de apreciação e juízo.
O que Pareyson nos tenta dizer, é que a obra de arte possui as suas próprias regras, e que a lei geral é a regra individual da própria obra a ser feita. O artista obedece a própria obra que realiza sendo o seu inventor ao mesmo tempo em que está sujeito a sua própria legalidade. É criador e seguidor, soberano e subalterno de uma obra de arte que só pode existir da forma que ela mesma permite ser feita ao realizar uma adequação de si consigo mesma, caracterizando o puro êxito. Êxito, portanto, não tem a ver com o modo sob o qual a obra é percebida, e sim pelo triunfo em existir na forma como negocia a sua revelação para o mundo, entre o desejo do artista e a coerência de si mesma.
Deste modo, entre artista e obra evidencia-se uma dialética que Pareyson vai chamar de forma formante e forma formante se constitui pela desco-ue significa dizer que:
Os artistas encontram a forma enquanto a executam, isto é, só escrevendo, ou pintando, ou cantando, delineiam a imagem, e mesmo quando, sob o prepotente estímulo da inspiração, parece-lhes que o que fazem é só transformar em sinais físicos uma imagem impetuosamente formada na sua fantasia, na realidade põem-se à prova, com a própria extrinsecação, que desse modo confirma-se como inseparável da concepção. (Pareyson, 1989, p. 184)
A obra é formante no sentido em que, se dá pela experimentação ao mesmo tempo em que instrumenta o artista no modo como deve eleger os meios pelos quais seguirá a sua empreitada. A forma formada diz respeito ao como:
O decurso do processo artístico é de algum modo orientado, porque o artista, mesmo não possuindo nenhum critério objetivo e mesmo não dispondo de um projeto preestabelecido, está em condições de reconhecer e distinguir, no curso da produção, aquilo que deve " cancelar, ou corrigir, ou modificar, e aquilo que, pelo contrário, está bem conseguido e pode considerar-se como definitivo. (Pareyson, 1989, p. 184)
Se entendemos a existência da obra somente após a sua criação ou no seu término, entendemos também que não seria possível o critério do êxito, como já havíamos dito antes, se não houvesse um caráter formante na obra formada. Ou seja, a síntese dessa dialética é o resultado que compreende que o processo artístico é guiado por uma antecipação da existência da obra. A forma age como formante antes de sua existência, enquanto orienta o artista na eleição das ferramentas de execução sugerindo os métodos.
É a partir desse ponto de vista que entendo que o pensamento apriore sobre a obra de arte, é uma idealização de um projeto que pode conter uma metodologia, mas não é imprescindível. É neste sentido que proponho aqui um estranhamento dos métodos para expor as especificidades da Dança como área de conhecimento. Frequentemente artistas lançam mão de perspectivas metodológicas que não atendem integralmente as necessidades da criação, nos aproximamos de métodos qualitativos, quantitativos, etnográficos, bibliográficos, mas nada disso nos atende por completo. Estamos sempre buscando formas de nos representar e dizendo que as nossas metodologias se aproximam de a, b, ou c, mas na realidade sempre acabamos por inventar o nosso método enquanto investigamos.
A InvestiCriação
Não à toa, o professor Pablo Parga sugere pensarmos em metodologia em artes a partir de uma noção que ele chama de InvestiCriação2. A sugestão parte da compreensão de que existe uma diferença de ordem prática entre artistas vinculades3 e não vinculades a academia. Artistas vinculades a academia, normalmente professores, enfrentam um conflito administrativo cuja necessidade de descrever, explicar e sistematizar os seus processos investiga-tivos, submete suas pesquisas a protocolos que atendem demandas valorativas pertinentes ao sistema do qual fazem parte. O que não acontece com os artistas não vinculades, a não ser quando, em função da submissão de um projeto em um edital público, esses artistas não vinculades decidem submeter uma proposta a outros protocolos de avaliação, normalmente determinados pelo governo do estado, para serem julgados por uma comissão específica.
O que acontece na ausência de um edital público é que artistas não vinculades se concentram em suas investigações e enquanto está em sala de ensaio ou em campo, artista vinculades estão tentando equacionar no texto escrito as suas justificativas, aplicabilidade, público-alvo, explicar os por quês sem nem mesmo saber se o porquê tem resposta, e ainda explicar quais são os conhecimentos pré-existentes ao assunto e os que serão gerados depois. E obviamente nada disso bastará se a pontuação do Lattes não for suficiente para a aprovação.
Para artistas vinculades existe, portanto, uma angústia bifurcada: a que segue o caminho da realização da sua expressão e a que precisa atender aos protocolos de conduta acadêmicos. Por uma implicação prática e inevitável, artistas vinculades acabam por atender e cumprir os protocolos acadêmicos em função da construção de uma carreira. E por muitas vezes realizam as tarefas de um modo acrítico ao que está estabelecido pelo poder ideológico dominante no sistema acadêmico. Por isso reafirmo a necessidade de estranhar o sistema em todas as formas possíveis, inclusive tentando corromper essa escrita onde as brechas permitirem. Agora, por exemplo. Entende? Sim, eu estou coreoescrevendo4 para tentar te mover e fazer você dançar comigo!
Seguindo... O cerne da discussão proposta por Parga diz respeito a uma revisitação da nossa compreensão sobre metodologia de investigação em artes, para que possamos desconstruir o cânone em função de fortalecer, não só na academia, mas de um modo geral, o uso de metodologias inauguradas pela prática. Desta forma se compreende que a geração de novos processos investigativos produz outros métodos de pesquisa, reconhecendo assim que existem tantos métodos distintos de pesquisa quantos forem os processos criativos em arte.
Parga diz que:
Equiparando o trabalho científico ao artístico e acreditando que têm os mesmos objetivos, a normatização universitária ditada a partir das profissões de maior prestígio social, obriga ao professor-criador a explicitar suas pretensões no mesmo formato, sem levar em consideração se a obra artística derivará de um projeto de pesquisa ou de um protocolo conceituado a partir das áreas de conhecimento ou disciplinas científicas. É aqui onde a discussão sobre o valor da pesquisa com objetivos de criação ou a criação como produto de um processo de pesquisa que diz respeito principalmente aos criadores imersos nas inevitáveis dinâmicas de avaliação e qualificação do trabalho docente integrado a pesquisa, ou seja, aos criadores institucionalizados, preocupados porque o seu trabalho (seus processos e produtos artísticos) sejam reconhecidos da mesma forma que os processos e produtos das áreas científicas. Se assume desta forma uma lógica de trabalho que não contempla as necessidades específicas da produção artística e a científica. Portanto, ao não explicar essa diferença se assume que o criador deve fazer sua pesquisa da mesma forma que os cientistas. (Parga, 2018, pp. 53-54)5
Parga ainda diz que enquanto o cientista está preocupado com a procura da verdade com o objetivo de solucionar problemas, a obra artística não pretende nem um nem outro. É muito mais o lugar de elaborar perguntas e criar problemas dentro de problemas, sem a necessidade de instituir verdades e conceitos em produtos fechados como se fossem essências em frascos de perfumes.
Outra importante observação do autor diz respeito a consideração de que, o tipo de investigação que fazem artistas vinculades6 não se define por critérios cientificistas e sim pelas necessidades, buscas, perguntas e experimentações na relação com o outro, principalmente em dança/performance cujas relações se estabelecem, muitas vezes, pelo contato do movimento. Esse tipo de fricção promove conhecimentos que atravessam a esfera da fisicalidade e alcançam camadas sensíveis e subjetivas sem que sejam invasivos, mas são absolutamente pessoais e desviam da norma porque não se pretendem como procedimentos metodológicos, sobretudo em seus processos iniciais.
Esses processos pessoais de busca, exploração, indagação, experimentação a partir de referenciais próprios do criador, que não seguem objetivos científicos merecem ser reavaliados no contexto acadêmico, não pela sua aproximação ou distanciamento dos parâmetros científicos. Uma possibilidade seria o reconhecimento desses processos pelo papel que desempenham, precisamente na criação artística. (Parga, 2018, p. 57)7
Acrescentaria que não só na criação artística, mas em todo processo que envolve algum tipo de relação que tenha no movimento, uma razão educacional ou socializadora, e ao mesmo tempo, porque esse tipo de atividade também pode ser gatilho criativo em uma produção artística.
São esses os pressupostos que fortalecem a inventividade na busca por termos, protocolos e metodologias que estejam mais aproximados com o fazer da arte. Foi olhando para as incompatibilidades e necessidades específicas que Parga sugere o termo InvestiCriação8. A proposta implica em um processo em que a pesquisa e a criação acontecem ao mesmo tempo, e, acrescento, de forma embaralhada. Talvez esse embaralhamento não seja um privilégio das artes, é possível que pesquisas de outras áreas verifiquem o mesmo. O embaralhamento é uma forma de assumir a percepção de como somos atravessades a todo instante por impulsos criativos que podem surgir de incontáveis formas diferentes.
Uma palavra, um cheiro, um filme, um encontro, um objeto, um poema, uma música, uma maçã que cai na cabeça, uma piada, uma textura. Estamos sujeites a tudo isso ao mesmo tempo. Quando um impulso criativo nos acomete, nunca vem só! Ao mesmo tempo já imaginamos uma forma de pensar um movimento que surgiu do impulso de um sino9, por exemplo, e já entendemos a simbologia do objeto que remete ao uso do figurino e que se relaciona perfeitamente com as terminologias e teorias que estamos usando, etc. É assim muitas vezes! O impulso também pode ser mais ou menos convulsivo, preenchido de informações.
Depende do envolvimento que se estabelece com a pesquisa e dos estímulos que se usa para criar. Espero que não me cortem agora, mas estou falando da maconha, ou qualquer outro estado ampliado de percepção, fruto de outros estímulos, por exemplo.10 Pode ser também um estímulo gerado por uma corrida, flexões, chocolate...Tudo isso pra dizer que, existe uma impossibilidade de estabelecer etapas tão claras e definidas para a realização de uma pesquisa, a partir de metodologias que não comungam das especificidades de uma pesquisa em artes.
Segundo Parga, é importante chamar atenção de que a InvestiCriação se trata de um projeto de pesquisa de criação artística que não pode ser corrompido pelos termos estabelecidos pela ciência acadêmica, sobretudo quando se pretende a adaptação de um modelo a outro. Quando a arte se adapta ao modelo vigente academicista, é sempre um negócio fadado ao fracasso por querer parecer uma pesquisa científica, sem que os parâmetros sejam iguais às pesquisas que de fato são cientificas. O que acontece é que artistas vinculades não pretendem fazer uma pesquisa científica. Ainda que se utilize dos mesmos procedimentos de exploração, verificação, elaboração de perguntas, seleção e exclusão, artistas vinculades fazem pesquisa artística!
í Portanto, a InvestiCriação é uma metodologia que propõe uma articulação dos processos de pesquisa científica acadêmica com os da criação artística, assim o autor sugere que os protocolos estarão mais próximos dos planos de trabalho de artistas vinculades, mas com uma incorporação de elementos da pesquisa acadêmica que,
[...] ainda que não seja científica deve ser rigorosa. Assim um relatório de pesquisa seria substituído por um testemunho sobre o processo da obra criada, que seria apresentado de modo complementar a própria obra artística, como um poema, uma coreografia, uma obra teatral, segundo a especialidade do artista. (Parga, 2018, p. 58)11
É uma contribuição importantíssima feita pelo autor. Mas caberia pensar que tipo de testemunho seria esse para que não se corra o risco de ter que justificar a obra com todos os quesitos aos quais não cabem à natureza do fenômeno. Se o testemunho é de natureza subjetiva, e conste como algo que é fruto e reverberação de uma experiência estética, e de como essa experiência move pensamentos, tudo bem! Mas se o testemunho for de natureza objetiva e pretenda extrair dados, números e metodologias enquadradas, então de nada valeria o esforço em propor nomes e métodos diferentes para falar da mesma coisa, se no final tivermos que tratar dos assuntos e modelos que não acreditamos.
O que Parga sugere como composição do testemunho é que, ao iniciar a pesquisa, deve-se registrar o processo de modo que seja possível apresentar em paralelo, um testemunho construído a partir dos documentos do processo, que são diários de trabalho e de campo, blogues, vídeos, áudios, fotos, roteiros e todo material que seja significativo dentro da pesquisa.
Diante de tudo isso, percebo que a InvestiCriação não se trata de uma total rejeição aos modelos metodológicos já conhecidos, porque entende-se o valor e a importância desses métodos, e a InvestiCriação também se vale de suas estruturas. Percebe-se também que nessa metodologia estruturada por Parga é possível identificar elementos que formam parte de outras perspectivas metodológicas como a Crítica Genética de Cecília Salles e a Pesquisa Performativa discutidas por Brad Haseman e Ciane Fernandes, respectivamente, das quais me concentrarei a partir de agora.
A Crítica Genética
Cecilia Salles apresenta a Crítica Genética12 como um estudo iniciado na França, em 1968, por Louis Hay e Almuth Grésillon, na oportunidade em que
O Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) criou uma pequena equipe de pesquisadores, germanistas ou de origem alemã, encarregados de organizar os manuscritos do poeta alemão Heinrich Heine. (Salles, 2008, p. 11)
Em 1985, a Crítica Genética foi introduzida no Brasil por Philippe Willemart, no i Colóquio de Crítica Textual em São Paulo, e, em meados dos anos de 1990, segundo Salles, os estudos genéticos viveram uma época de exploração e alargamento de horizontes.
A autora diz que a Crítica Genética, ao se dedicar aos estudos dos manuscritos literários, já carregava em si, desde o seu princípio, vias de acesso para o desbravamento de outros campos para além da literatura, que se estendiam à possibilidade de discussão de processos criativos no campo das artes, por exemplo.
Assim, o desenvolvimento da Crítica Genética e a reflexão promovida pelos seus pesquisadores possibilitaram a sobrevivência desses estudos no século XXI. Seus estudos foram rigorosos em termos de definição, evitando fronteiras nebulosas quanto à sua aplicabilidade no campo das artes.
A partir de um interesse notado em artistas brasileiros, Salles afirma que a observação desse interesse se torna evidente na valoração e preservação de documentos de processos criadores, feito pelos próprios artistas ou por sua família. Portanto,
Enquanto o crítico genético ou geneticista - o pesquisador que se dedica à Crítica Genética -tem a curiosidade de conhecer e compreender a criaçã o em processo, os artistas mostram interesse, em muitos casos, em conhecer e compreender os estudos desenvueltos por esses pesquisadores. (Salles, 2008, p. 18)
Observa-se, então, uma valoraçã o do processo criativo, elevando-o ao status de privilégio em relaçã o ao produto final. Logo, a Crítica Genética surge com a intençã o de entender e destrinchar o processo de criaçã o tendo como ponto de partida os rastros do percurso feito pelo artista.
A funçã o do Crítico Genético, que com frequência no universo da arte é o próprio artista, está exatamente em fazer dos seus próprios rastros, um meio de conexão com o ato de criaçã o, seja dele ou não, no intuito de identificar os modos de construçã o das obras artísticas oferecendo, assim, uma possibilidade de abordagem da obra, bem como uma perspectiva de processo criativo e metodologia.
A perspectiva desse processo nos revela que a obra de arte, na medida em que é possível lidar com os registros deixados ao longo do percurso criativo, é resultado de um processo e, portanto, a obra se revela como algo que vai se tornando possível ao longo de uma caminhada que envolve uma multiplicidade de acontecimentos.
Ao penetrar no processo criativo, a Crítica Genética possibilita a visibilidade de camadas superpostas de uma mente em criação que vão se desvelando aos poucos, como um quebra-cabeças que indica onde estão os seus possíveis encaixes, sem, com isso, existir uma obrigatoriedade de encontrar fórmulas que deem conta de explicar a complexidade do fenômeno. Trata-se de uma tentativa de, por diferentes vias, aproximar-se do processo gerador de uma obra artística.
Para Cecilia Salles, "O nome Crítica Genética deve-se ao fato de que essas pesquisas se dedicam ao acompanhamento teórico-crítico do processo da gênese das obras de (2008, p. 26). É importante ressaltar que o estudo da obra de arte passa por uma mudança na concep-que veio possibilitar, no âmbito da criação literária, uma valoração que reposicionou os manuscritos de um lugar de bem simbólico para outro onde possui valor cultural. Assim, "tornou-se material para apreensão com intuito científico. É a eclosão do manuscrito que passa a tornar possível a exploração de sua potencialidade" (p. 29).
O confrontamento com o objeto de estudo da Crítica Genética propicia o acompanhamento de uma série de acontecimentos em cadeia que conduzem à gênese da obra, frente a frente com o objeto de criação. É entre o material de registro e a obra apresentada ao público que está o pensamento em movimento, e é neste espaço que reside o interesse pelo método.
No momento em que os estudos genéticos ganharam maior proporção em sua aplicabilidade fora do campo literário, tornou-se importante compreender que a ideia de manuscrito, embora já não fosse limitante no campo literário, não atendia mais ao fluxo das necessidades insurgentes e, portanto, ajustes conceituais se fizeram necessários. Os manuscritos passam a ser pensados como documentos de processo, devido ao fato de que os registros de processo de uma obra artística são diversos e não caberiam mais em uma definição tão limitante quanto a ideia de manuscrito.
Com relação a isso, Salles afirma que os documentos de processo são, portanto, registros materiais do processo criador. "São retratos temporais de uma gênese que agem como índices do percurso criativo" (Salles, 2008, p. 38). A partir daqui podemos estreitar a compreensão dos documentos de processo com os elementos do testemunho mencionados por Parga. A diferença é que Parga não atribui diretamente aos elementos do testemunho o status de elementos orientadores de um processo metodológico, como faz Salles. A confluência dessas metodologias atribui ao processo artístico mais uma possibilidade de estruturação metodológica.
Outra consideração feita por Salles, ainda acerca da característica diversa dos documentos de processo, está em /identificar o seu caráter de armazenamento e experimentação. Todo material armazenado se torna um documento de processo e os modos de armazenamento variam de um processo para outro, assim como de um artista para outro.
A característica de experimentação notada em diários, esboços, croquis, roteiros, maquetes, projetos ou correspondências, deixam transparecer a natureza indutiva da criaçã o através de hipóteses de naturezas diversas que são levantadas e testadas. A pesquisa depara-se com possibilidades de obras onde surgirão singularidades que direcionam as opções.
Com relaçã o a isso a autora ainda considera que “o que nos interessa aqui é destacar as diversas possibilidades de fonte de informaçã o às quais o crítico genético pode ter acesso e apontar para a variedade de informações que podem ser obtidas a partir dessas diferentes fontes” (Salles, 2008, p. 42).
Portanto, a consideraçã o mais relevante para o crítico genético é não investir numa procura por algo que ele imagina encontrar, e, sim, permitir-se perceber a multiplicidade de informações da documentaçã o. A percepçã o desses documentos valoriza o seu processo criativo dinamicamente em tempo e espaço, reforçando suas singularidades.
Essa consideração corrobora com a ideia de estado de movimento do objeto. Ainda pensando na caracterização do objeto de estudo do crítico genético, "Pode-se dizer que a rede formada por todo o conjunto de documentos, do qual ele está de posse, caracteriza-se por estar sempre em construção" (Salles, 2008, p. 50). Os documentos são vistos como um processo evolutivo que denota um pensamento em movimento, em uma mobilidade complexa e uma estabilidade precária de formas. Logo, o que está em trânsito, "É a variação dos estados, a confrontação de uma obra com todas as possibilidades que a compõem, tanto em relação ao que vem antes quanto ao que vem depois." (Salles, 2008, p. 50).
No estudo dos caminhos percorridos por artistas em direção à obra, a Crítica Genética possibilita o ato de uma investigação de caráter indutivo sobre o processo criativo, com uma análise isolada das peças do mecanismo. No entanto, essas peças devem ser devolvidas ao movimento da criação, ou seja, ao separar elementos para uma análise, não se pode perder a noção do todo no qual se insere.
A Crítica Genética conduz a pesquisa, através de uma perspectiva transformadora, a reencontrar a obra sob uma nova abordagem, sem perder de vista que "a Crítica Genética não escapa do propósito da ciência de encontrar explicações e generalizações. Seus pesquisadores estão empenhados em buscar as características gerais (ou algumas características gerais) que regem a criação artística" (Salles, 2008, p. 74).
As características gerais estão em meio aos documentos de processo, e o seu estudo pode refletir sensações vividas no percurso criativo que ficam registradas em cadernos de anotações, com suas rasuras e substituições, colocando o pesquisador muito próximo do artista, em um contato revelador desse sujeito, das suas hesitações, escolhas e recomeços.
Esse é o universo revelado sob a ótica do artista, suas relações com o mundo e a construçã o de sua obra entre suas escolhas éticas e estéticas. O foco de interesse está no valor que o artista confere aos diversos momentos de sua construçã o, e que o leva a optar por uma ou outra possibilidade. O papel do crítico genético está em seguir o processo criativo com uma perspectiva crítica que busque explicações sobre o ato criador, destrinchando a sua metodologia.
O crítico genético lida com “índices do percurso” (Salles, 2008) e não com o processo em sua íntegra. Salles afirma que:
Não temos acesso a todos os registros que o artista faz ao longo do processo. Além disso, o processo criador é repleto de decisões que não deixam rastros. Desse modo, por mais complexo que seja o dossiê com o qual lidamos, não temos acesso a todo o caminho criativo, mas a muito desse percurso. (Salles, 2008, p. 114).
Vamos entender uma coisa: Salles vem falando sobre o crítico genético na terceira pessoa. Ou seja, é alguém que acessa os documentos de processo de uma artista para relatar sua obra de alguma maneira, seja criticando ou apenas com o objetivo de levantar um percurso. Ok, sem problemas. Mas precisamos complicar um pouco isso. Aqui proponho um paradoxo que é: o sujeito do pesquisador, o crítico genético que faz o estudo dos documentos de processo e o sujeito criador do objeto de estudo, neste trabalho, são a mesma pessoa; O artista vinculade!13
Sendo os três a mesma pessoa, o ponto de vista do artista vinculade estabelece o olhar do pesquisador que se depara com teorías que lhe servirão como ferramentas para o auxiliar, e o crítico genético atua na observaçã o e leitura dos documentos de processo, sem ignorar que os registros deixados ao longo do percurso criativo são deles próprios -artista vinculade e o crítico genético. Essa confusão será melhor entendida mais a frente com o processo criativo da performance Protocolo.doc14.
Com relação a essa confusão, poderíamos pensar que, se por um lado, a pesquisa exige um grande distanciamento crítico para bem analisar processo e obra, por outro, está implicitamente enriquecido pelo acesso direto ao caminho criativo. Mas não vou entrar nisso agora. Foi só uma reflexão compartilhada e sem desenvolvimento com a função de estranhar a norma.
O ponto de vista do artista vinculade -o pesquisador que é o seu próprio crítico genético- revisitará os percursos criativos, na tentativa de auxiliar o crítico genético e o artista vinculade em sua empreitada pelos documentos do processo. Mas, no entanto, o artista vinculade já não olhará para esses documentos com os mesmos olhos de antes de ser um artista vinculade e um crítico genético. Inevitavelmente, a obra ganhará um novo olhar - mesmo que ele seja originado do seu próprio criador -e, certamente, este novo olhar, vestido das lentes da InvestiCriação e da Crítica Genética, descobrirá brechas antes despercebidas em sua criação. É isso que farei brevemente com a performance Protocolo.doc.
A essa constatação soma-se a afirmação da obra em movimento constante, e que a possibilidade de uma revisão de seus processos pode levar ao surgimento de uma nova abordagem artística, repleta de pesquisas de natureza dedutiva, renovando e enriquecendo os estudos sobre a obra de arte. Trata-se de uma visão e um posicionamento em relação à consideração anteriormente feita a respeito de uma obra inacabada. Isto é, a não existência de uma obra como uma forma final e definitiva, em uma lógica de continuidade que põe em diálogo o instante de desencadeamento da obra de arte, e o seu ponto final em que regressão e progressão são sempre infinitos.
A obra está em continuo estado de movimento, como também as possíveis obras que aguardam o seu surgimento, a partir da metamorfose que os documentos de processo sofrem a cada diferente olhar lançado sobre eles ao envolver seleções, apropriações e combinações, gerando transformações e traduções. Com isso, estou afirmando que uma pesquisa em dança/performance, ao estar supostamente acabada, não oferece em seu fim, uma fórmula com a qual se pode repetir exatamente o que foi feito, porque não se trata de ciência. A interpretação dos métodos e dos percursos geram outras obras porque não existem prescrições e nem determinismos.
Assim, o olhar lançado sobre o processo criativo leva em consideração a mobilidade do pensamento, tomando o tempo como o sintetizador do processo criativo, em sua lenta manifestação em superposição de camadas. A revisitação do processo criativo da performance Protocolo.doc (2015), desde então, vem elaborando adaptações ao longo de cinco anos, atribuindo novos modos de criação, novas coreografias, novas músicas e novas ideias à performance. Isso gera uma compreensão de que o seu fazer e sua própria organicidade exigem uma permanente maturação em um sistema de formação que vai ganhando leis próprias e modificando as já existentes.
Ainda com relação às leis que a própria obra impõe, Pareyson afirma que é nesse olhar para "si" que a obra de arte se revela única e constituída de regras absolutamente particulares, ou seja, a obra é lei daquela mesma atividade de que é produto (Pareyson, 1998). O Protocolo.doc é o lugar de onde surge a metodologia que toma impulso a partir do olhar da InvestiCriação, da Crítica Genética e da Pesquisa Performativa, para guiar os trabalhos de pesquisa em componentes curriculares criativos do curso de Licenciatura em Dança da universidade Federal de Sergipe.
A Pesquisa Performativa
Brad Haseman (2015) em seu manifesto pela Pesquisa Performativa, propõe que a investigação performativa represente um movimento que sustenta que a prática é a principal atividade de pesquisa -e não apenas a prática de performance- e vê os resultados materiais da prática como representações de suma importância dos resultados de pesquisas em seu próprio direito.
Mais comumente, pesquisadores performativos progridem seus estudos, empregando variações de: prática reflexiva, observação participante, etnografía performativa, etnodrama, investigação biográfica/autobiográfica/narrativa, e o ciclo de investigação da pesquisa-ação. Pesquisadores guiados pela prática, constroem pontos de partida empíricos a partir dos quais a prática segue. Tendem a começar a praticar para ver o que emerge e reconhecem que o que emerge é individualista e idiossincrático. É inevitável mencionar que as colocações de Parga encontram ecos muito similares ao que diz Haseman. Para os dois autores é a própria criação da obra que faz emergir seus propósitos, objetivos e métodos.
A pesquisa guiada pela prática não implica dizer que os seus pesquisadores trabalham sem maiores pretensões ou aspirações emancipatórias, mas evitam as limitações das correções de pequenos problemas e das exigências metodológicas rígidas no primeiro momento de um projeto. Outra característica de pesquisadores guiados pela prática reside na insistência de que, os resultados da investigação e as reivindicações de conhecimento, devem ser feitos através da linguagem simbólica e forma de sua prática.
Têm pouco interesse em tentar traduzir as conclusões e entendimentos da prática nos números (quantitativa) e palavras (qualitativa), preferidos pelos paradigmas tradicionais de investigação. "Isso significa, por exemplo, que a romancista guiada pela prática afirma a primazia do romance; para a designer de interação 3D, ela é o código de computador e a experiência de jogar o jogo; para a compositora, é a música; e para a coreógrafa, é a dança." ( Haseman, 2015, pp. 44-45)
Sobre a pesquisa quantitativa, Haseman observa que elas tratam de um abrangente conjunto de abordagens que tomam a investigação e a hipótese como modelos teóricos para testarem contra as evidências empíricas, com o objetivo de encontrar medidas e quantificar fenômenos, generalizando resultados e formulando leis invariáveis. Além desses objetivos, a pesquisa quantitativa "[...] visa eliminar o ponto de vista individual do pesquisador (e quando seres humanos estão envolvidos, os pontos de vista daqueles sujeitos que estão sendo estudados)" (Haseman, 2015, p. 42)
Já sobre a pesquisa qualitativa, da qual os pesquisadores em arte conseguem se aproximar um pouco melhor, Haseman diz que ao operar de forma diferente, a pesquisa qualitativa se utiliza de abordagens indutivas implicando a relação entre pesquisadores e participantes a partir de variadas estratégias de métodos e investigação. Seu objetivo principal seria a apreensão do sentido da ação humana, o que implica na evidência da importância dos processos metodológicos.
Em algumas tradições acadêmicas como os Estudos Culturais, artefatos (coisas), comportamentos e respostas são construídos como textos qualitativos. Eles são estudados durante o processo de investigação, e as descobertas são representadas como baseando-se em uma variedade de fontes e abordagens. (Haseman, 2015, p. 42).
Haseman começa a apresentar o problema da aplicação dessas metodologias no campo das artes, porque as práticas de pesquisa de pesquisadores quantitativos e qualitativos, estão interessadas no estudo das práticas de construção de significados. No entanto, os significados subjetivos de que lidam as artes, se tornam órfãs de estratégias e metodologias que entendam melhor o seu modo de existir e atendam suas demandas.
Em termos gerais, os pesquisadores quantitativos não eram muito interessados nos fenômenos da prática humana (a menos que ele possa ser medido, é claro, dizem Masters e Jonhson [1996]). Da mesma forma que importantes pesquisadores qualitativos estabeleceram estratégias de pesquisa que informaram a pesquisa sobre prática, e toda a panóplia de métodos de observação desenvolvida para a pesquisa qualitativa e quantitativa veio atestar este posicionamento da prática como o objeto de estudo, não como um método de pesquisa. (Haseman, 2015, p. 42)
Ou seja, ainda que as artes criem estratégias para validarem as suas pesquisas qualitativa ou mesmo quantitativamente, é fato que essas metodologias não se adequam às subjetividades dessas pesquisas, e tentam distanciar o sujeito da pesquisa como quem separa o corpo do seu próprio fazer. Em dança/performance, como já foi dito no início desse texto, o corpo é a própria comunicação, é o próprio fazer, de modo que considerar a prática como método de pesquisa é o caminho mais favorável para as pesquisas em artes.
Em função disso, atualmente existe um esforço por parte de autores como Parga, Haseman e Fernandes, de entender a prática no âmbito do processo de pesquisa como o fazer que guia a pesquisa através da prática, e não apenas como objeto de estudo como afirma Haseman.
Mais um ponto que se destaca para a Pesquisa Performativa, está no modo como essa metodologia apresenta os seus resultados que se diferenciam da importância comum que é dada aos números pelas metodologias quantitativas e qualitativas. É o simbolismo que expressa os resultados da Pesquisa Performativa de modo que essa forma não se vê limitada pelas restrições discursivas ou aritméticas. É o fazer/dizer simultâneo e integral nas "formas de imagens fixas e em movimento; formas de música e som; formas de ação ao vivo e código digital" (Haseman, 2015, p. 46).
Note que Haseman e Parga são complementares. A diferença é que Haseman trata de um manifesto pela Pesquisa Performativa como metodologia e Parga avança pela implementação da InvestiCriação como uma metodologia, sugerindo alterações nos protocolos acadêmicos e estruturando o projeto de pesquisa dessa metodologia, com todos os parâmetros necessários para a sua implementação. Os dois autores defendem os resultados das pesquisas em formas simbólicas pela apresentação da dança/performance, música, teatro, etc., mas, no entanto, Parga acrescenta a isso o testemunho. Que seria o relato em forma de registros audiovisuais, ou como já dito, por meio de blogues, diários de campo, fotos, rascunhos, depoimentos e a partir disso, reforço o caldo trazendo a noção sobre os documentos de processo a partir da Crítica Genética de Cecília Salles.
Agora podemos voltar! Haseman estrutura uma pergunta que transcreverei na íntegra juntamente com sua resposta, porque não há forma melhor de explicar o modo como as formas simbólicas de apresentação de uma pesquisa artística podem ser entendidas como pesquisa.
Mas como podem as formas de apresentação ser entendidas como pesquisa? O que faz uma dança, um romance, uma performance contemporânea, o resultado de uma pesquisa? Um indício é fornecido pela noção de performatividade fornecida por J, L. Austin (1962). Para Austin, atos de fala performativos são enunciados que realizam, pela sua própria enunciação, uma ação que gera efeitos [...] o dado simbólico funciona performativamente. Ele não só expressa a pesquisa, mas, nessa expressão, torna-se a própria pesquisa. O contexto, como Austin deixa claro, é crucial para isso [...] quando os resultados da pesquisa são apresentados como tais enunciações, eles também encenam uma ação e são muito mais apropriadamente chamados de Pesquisa Performativa. Isso não é pesquisa qualitativa: isso é ele próprio. (Haseman, 2015, p. 47)
Talvez fique mais evidente agora que uma das funções dessas novas perspectivas metodológicas, é evidenciar que as estratégias e métodos são determinados pelo fenômeno que se investiga, e o fato de perceber que o repertório das ferramentas quantitativas e qualitativas, não atendem suficientemente as demandas originadas pelos conteúdos emocionais, subjetivos e cognitivos descobertos na pesquisa na lida com o fenômeno.
A partir da perspectiva de Ciane Fernandes (2013), em seu artigo "Em busca da escrita com dança: algumas abordagens metodológicas de pesquisa com prática artística", que trata sobre a Pesquisa Performativa defendida pelo manifesto de Brad Haseman, aborda a Pesquisa Performativa como uma realidade dinâmica, construída socialmente e permeada pela experiência sensível criativa que move nossas percepções e afetos.
Enquanto as pesquisas artísticas estiverem atreladas aos protocolos acadêmicos, que exigem das pesquisas uma produção escrita que, na melhor das hipóteses, vai cumprir a função de acompanhar a obra artística criada e não de legitimá-la, a contribuição de Fernandes insere um modo de pensar uma escrita que não se distancie da obra criada, e que ao mesmo tempo estranhe o modelo hegemônico. Fernandes diz que
Escrita performativa pode ser aquela organizada pela prática, a partir da prática, em modos imprevisíveis, inclusive os mencionados acima. Assim, a arte deixa de ser apenas um produto ou mesmo um processo a ser descrito, analisado e inserido em outros moldes (por mais abertos e dinâmicos que sejam), e passa a ser em si mesma o modo de (des)organizar discursos e métodos, bem como questionar a imposição de resultados quantitativos. Ou seja, a prática artística passa a ser a chave-mestra que acessa, conecta e/ou confronta os demais conteúdos, trazendo uma contribuição única para o contexto acadêmico, que muitas vezes torna-se estagnado com seu excesso de regras e normatizações. (Fernandes, 2014, p. 2)
Segundo Fernandes, a pesquisa nasce da experiência, daquilo que move a pessoa da pesquisa quando ela é guiada pelos seus sentidos, intuições e muitas vezes pela marginalização do seu fazer, criando conhecimento e expondo as metodologias quantitativas e qualitativas como insuficientes como já mencionamos anteriormente.
Entendo a escrita performativa como algo que tenta criar ligações no modo de escrever com o que a experiência implica no corpo. Ou seja, é tentar criar na escrita uma forma de afetar o leitor do mesmo jeito que a experiência da performance pode fazer. Ainda que toda tentativa de escrever sobre a experiência, para mim, já seja um ato de edição, traição e reinvenção.
Acredito que a escrita performativa é um exercício que acho importante fazer, para encontrar formas de abrir espaços e modos de perceber sobre como somos afetades pela experiência e, assim, tentar escrever sob e com os efeitos do fenômeno. Seria então a escrita performa-tiva um modo único e particular de afetar o leitor por um contato originado na experiência. Mas esse é um assunto do qual não tratarei agora porque implica outras camadas da Pesquisa Performativa que não cabe discutir nesse momento. Em um próximo artigo, talvez.
Voltando... Deste modo, a Pesquisa Performativa conduz a novas compreensões sobre a própria prática e, atravessando todas as etapas comuns e inerentes ao processo artístico, vai transformando, assim, o ato da criação artística no próprio método da pesquisa. Entendemos que a criação dos métodos pode ser amparada pela InvestiCriação, quando percebemos por essa analogia com a Pesquisa Performativa, que existem elementos similares e complementares entre elas, como também, a percepção de que cada pesquisa em arte, terá um novo universo a ser explorado sob o aspecto metodológico e que por isso, mesmo tendo um eixo organizado para guiar as pesquisas como a InvestiCriação, não determina que as pesquisas estejam encarceradas em um modelo determinista. Portanto, não estamos preses em nossas próprias amarras!
Logo, afirmo a pertinência da prática como relevo da pesquisa, indicando uma prospecção mais atenta às noções ou conceitos que melhor se adequem aos percursos artísticos experienciados, levando em consideração que o processo criativo não diz respeito a um objeto ou obra acabada e que, portanto, é sempre um processo ligado ao domínio do fazer e da ação. Ou seja, são os argumentos necessários para entender a potência da criação como norte principal da pesquisa, sem que antes de sua existência, seja necessário vestir a pesquisa com o tubinho preto da metodologia que melhor lhe cair bem.
O Protocolo.doc
Finalmente chegou o momento de contar para você sobre o que se trata essa performance. Muito bem, Protocolo.doc é o nome da performance que vem acontecendo desde 18 de maio de 2015 como uma experiência cênica sobre gênero, que faz parte da minha pesquisa de doutorado defendida em março de 2019 pelo PPGAC UFBA Intitulada, Cabra macho e flamenco transculturados: a dança como embaralha-mento de subjetividades15. Essa pesquisa foi desenvolvida por mim, autor, e teve a orientação da Professora Dra. Daniela Amoroso (UFBA) e coorientada pelo Professor Dr. Carlos Mendonça (UFMG). Em cena, problematizo aspectos da heteronormatividade tensionando imaginários de virilidade do dançarino flamenco e do cabra macho nordestino, sugerindo imagens transitórias no corpo pelo uso de acessórios e indumentárias que relativizam binômios como masculino/feminino, cultura/natureza. O corpo dessas masculi-nidades que cruzam eucorpo16, são pluralidades pensadas sob aspectos sociais, culturais, antropológicos e epistemológicos, que entendem os binômios não como polaridades, mas como interseções ao propor um lugar de fala que tem no movimento da dança o seu local de acontecimentos, a fim de compreender a quais protocolos de conduta estamos submetides ao refletir sobre como o gênero está implicado em determinados imaginários de masculinidade.
Este trabalho vem se modificando à medida em que as experiências, transformadas em corpo, geram novas reflexões acerca do tema. Por se tratar de uma obra que tem a transculturação como uma de suas fundamentações teóricas, não seria possível determinar uma única forma de olhar para a produção de subjetividade a partir de conceitos fixos e monolíticos.
Neste trabalho, o prefixo trans ratifica a ideia de fluidez e transitoriedade, favorecendo a produção da diferença como um aspecto imprescindível para pensar as noções que cercam temas como cultura, gênero e sexualidade. É com essa ideia de trans(forma)ção que o Protocolo.doc vem se modificando com as experiências que já teve na participação de alguns eventos17. Em julho de 2018 a performance foi apresentada no DT Espácio escénico em Madrid ao final da bolsa sanduiche financiada pelo PDSE CAPES de 2016, Programa de Doutorado Sanduiche no Exterior. E em março de 2019, fez sua mais recente apresentação para a defesa da tese no Teatro do Movimento da Escola de Dança da UFBA.
Ao final do afastamento para doutorado, em 2019 voltei ao departamento de dança do qual faço parte desde 2013 na Universidade Federal de Sergipe. Esse regresso me fez revisitar o Protocolo.doc em função de um componente curricular que ministrava que se chamava Tópicos especiais de dança i, cujo assunto era Dança e Gênero. E neste momento, já aviso logo que qualquer tentativa de ordenação dos fatos e a metodologia que segui para a criação do componente e do Protocolo.doc é, ou será apenas, o que este corpo que vos escreve esqueceu de lembrar. Ou como diria Ivan Izquierdo, "Vivemos sobre vestígios. Funcionamos basicamente com vestígios." (Isaacson et al., 2012, p. 18). E se eu não lembro do que comi ontem, imagine.
Seguimos tentando... Começo falando do meu interesse pelo livro Manifesto Contrassexual, de Paul B. Preciado (2014), onde tive contato pela primeira vez, de forma mais detalhada, com as ideias sobre a proposta de um contrato contrassexual que subverte condições hetero-normativas. A contrassexualidade, para Preciado, afirma o desejo não mais limitado ao prazer sexual proporcionado pelos órgãos reprodutores que fundamentariam a diferença sexual, mas, sim, uma política do desejo capaz de sexualizar todo o corpo, lugar de resistência às normatividades.
compreendido como uma fuga normativa e ato de sexualização do corpo que remete à uma performatividade queer que Butler considera como uma descrição do gênero como um "fazer", refletindo como "um estilo corporal poderia nos levar a pensá-lo como uma atividade que se parece com a escolha de um traje num guarda-roupa preexistente" (Salih, 2013 p. 72).
Segundo Carlos M. Camargos Mendonça, em seu livro E o verbo se fez homem: corpo e mídia,
Vestir-se é escrever sobre o corpo, é construir através da roupa um texto que nos coloca em comunicação com o mundo. Adornar o corpo é codificar nosso território existencial. Assim como reconhecemos o profissional por seu uniforme, identificamos os indivíduos e o grupo ao qual pertencem por sua forma de vestir e seus gestos. (Mendonça, 2013, p. 73).
É claro que não se trata de uma interpretação literal do que diz Butler e tampouco Mendonça, essas argumentações e perspectivas endossam o uso da bata de cola18 como um dos elementos norteadores que indica pistas para tentar entender quais são os dispositivos passíveis de serem tratados como mecanismos de produção de subjetividade e de relativização de gênero na construção da performance Protocolo.doc.
Assim, desde o princípio da pesquisa, venho compreendendo o uso da bata de cola como um elemento que poderia conduzir de forma reflexiva uma das questões norteadoras da pesquisa como, por exemplo: de que modo seria possível elaborar uma tensão no imaginário de masculinidade do homem na dança flamenca?
Então foi a partir do elemento da indumentária feminina no baile flamenco que comecei a construir essas tensões sem que antes tivesse pensado em metodologias, eu queria explorar o elemento! No princípio da experimentação, parti de um material coreográfico pronto que eu tinha no meu repertório, usando uma bata de cola. A Sevillana!19. Fiz uso desse material acrescentando a ele a gravação da minha voz e uma voz feminina em off da leitura do contrato contrassexual, as sevillanas, um sombrero vermelho (chapéu flamenco), dois mantones uma camisa de manga comprida preta com bolas vermelhas e uma bata de cola azul20.
A ideia foi criar uma relação entre texto, música e dança, na medida em que a troca de elementos e de roupas, suscitava uma imagem masculina transitória a partir de uma dança que é feita por homens e mulheres, e tem como possibilidade de realização o uso dos elementos que mencionei.
Agora vou te contar como e porque eu organizei os materiais na forma como disse acima. Minha primeira experiência com a realização da performance Protocolo.doc aconteceu em Salvador no dia 18 de maio de 2015. Nesse dia, fiz uma apresentação na Escola de Dança da UFBA. Daniela Amoroso, minha orientadora, me fez um convite duas ou três semanas antes para apresentar algum trabalho artístico no Seminário GIPE-CIT/PPGAC21 e Ciclo de Intercâmbios Artísticos Acadêmicos, realizado em parceria pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas e Programa de Pós-Graduação em Dança, da Universidade Federal da Bahia. Naquela ocasião, a apresentação foi feita após a palestra Corpo, exotismo e moda, do professor José Maria Paz Gago, da Universidade La Coruña (Espanha).
Quando o convite foi feito, eu não tinha ideia do que poderia fazer até aquele momento. No entanto, a leitura dos textos e a apresentação do meu projeto de pesquisa22 no SIP (Seminário Interdisciplinar de Pesquisa) já me indicavam alguma possibilidade de configurar artisticamente uma síntese (formatar um pequeno produto) prática sobre as questões que norteavam a minha pesquisa. Naquele momento, percebi que talvez uma das questões propostas por Pareyson poderia fazer muito sentido: a obra de arte pré-existe ao criador? Sim e não, seriam respostas possíveis?
E qual foi o motivo que me fez pensar nessa questão proposta por Pareyson? Talvez o modo pelo qual as informações se conectam sem que haja uma grande preparação para isso. E como eu acredito que as coisas nem sempre acontecem de forma ordenada, sempre tenho a impressão de que vivo dentro de um grande embaralhamento de informações e experiências e que, em um dado momento provocado por algum gatilho, as “cartas” começam a se organizar.
Então acredito que, no que diz respeito a um projeto poético, a resposta para a pergunta de Pareyson poderia ser, sim! Deve-se levar em consideração que um projeto poético diz respeito a um gosto pessoal, programático, operativo e é, ao mesmo tempo, marcado por determinações filosóficas, segundo Pareyson (1989). Dessa maneira, compreendo que já existiam elementos visíveis para a composição de um primeiro experimento, mas, no entanto, ainda não eram concretos.
Mas, ao contrário disso, se a obra não pré-existe ao seu criador, ela passa a existir quando a reunião de informações de toda ordem é ativada por um gatilho que é disparado, no meu caso, quando a orientadora me pergunta: quer apresentar alguma coisa?
E é pela sugestão do efeito do gatilho que começa a ordenação das "cartas" do embaralhamento, eu diria que se aproxima do que Cecília Salles sugere que são expansões associativas:
Observamos um claro percurso de ampliação de ideias. Uma ideia é tomada como causa e, a partir daí, são imaginados efeitos, em um jogo associativo mantido pela seguinte regra: se isso acontece, então, provavelmente pode gerar aquilo ou aquilo outro etc. Este modo de desenvolvimento do pensamento em criação nos remete ao que Bachelard (1978, p. 296) observa: "Na presença de uma imagem que sonha, é preciso tomá-la como um convite a continuar o devaneio que a criou". O desenvolvimento se dá por uma espécie de afinidade de ideias. (Salles, 2008, p. 123).
Portanto o devaneio das associações foi acontecendo no decorrer de alguns dias, juntamente com perguntas adjacentes ao projeto e uma autocrítica destruidora. Cheguei a uma definição razoavelmente equilibrada entre a crítica e a consciência da condição do momento, a saber: tempo escasso, um corpo enferrujado e uma vontade grande de dançar.
A apresentação foi realizada, depois discutimos um pouco sobre a performance e tive retornos muito bons sobre como as transições de figurino durante a execução eram interessantes, como o sapateado do flamenco era vigoroso, como a bata de cola impressionava pelo uso que eu fazia dela, como a música era forte, como os leques e xales eram lindos, como a tensão entre os gêneros era interessante. Enfim, foram retornos ótimos pra eu entender que: não era praticamente nada do que eu queria para a pesquisa!
Se o meu intuito fosse levar para cena apenas uma reorganização do que eu já sei com uma reflexão superficial sobre os problemas de gênero, eu não precisaria investir quatro anos em um doutorado. A pesquisa não deve se preocupar em afirmar conhecimentos, é preciso valorizar o não dito! Eu precisava guardar momentaneamente os meus conhecimentos sobre o flamenco e a dança moderna, para entender quais eram as formas simbólicas do movimento que o rigor da pesquisa exigia de mim.
Eu ainda repeti essa apresentação umas duas vezes em outros eventos, mas em seguida abandonei esse formato inicial quase todo. Mantive algumas coisas que achava que eram importantes como a bata de cola, e o manifesto contrassexual, por exemplo. Mas de 2015 a 2019 houve mudanças radicalmente importantes na performance. As botas viraram patas, a bata de cola azul ganhou outro modelo e outras cores, o chapéu flamenco virou um chapéu de boiadeiro e outros elementos foram agregados23 no movimento, no figurino e no ambiente sonoro. E uma performance que tinha 15 minutos passou a ser realizada em quase uma hora e meia, depende da plateia!
E qual foi a metodologia? Da descoberta, do fazer, das conversas, da experimentação, do erro, das leituras, das viagens, dos abraços, das lágrimas, das festas, da cachaça, do medo, do estranhamento, do acolhimento, do afeto, da raiva, do amor e da eterna dúvida porque o processo nunca acaba, é sempre um gesto inacabado (Salles, 2004).
Na tentativa de organizar a performance de forma didática para compartilhar a experiência com o corpo estu-antil no componente curricular24 que ministrei em 2019.2, no curso de Licenciatura em Dança da UFS como já expliquei anteriormente, revisitei a performance com o intuito de criar um roteiro metodológico25, assumindo assim a postura do crítico genético26, para que a turma que estava comigo nesse componente, pudesse ter um guia na composição das suas criações.
A revisitação foi feita a partir da verificação dos documentos de processo da construção da performance como fotos do início do processo, relatos de experiência das apresentações, registros de crítica, vídeos de laboratórios criativos, imagens de construção de figurino, vídeos de aulas, letras de músicas e principalmente o vídeo de registro da última apresentação e o roteiro da cena.
Ao final do curso, depois de termos discutido assuntos como gênero e poder, gênero e natureza, transsexualidades, Implicações de gênero na mídia, violência de gênero, aspectos do universo drag, LGBTQLA+ e marcadores da diferença, começamos a construir um processo criativo a partir do roteiro que elaborei. Esse roteiro não é o mesmo roteiro que sigo para encenar a performance. Ele é uma traição, ou edição, se você achar a palavra traição muito forte! Enfim, é uma edição a partir dos elementos que serviram como gatilhos disparadores do processo criativo que está em cena. Ou seja, a intenção não era que cada estudante reproduzisse um tipo de mimese do Protocolo. doc. O intuito era entender de que modo a metodologia do Protocolo.doc poderia servir como método criativo em pesquisas guiadas pela prática sobre as questões de gênero. É assim que surgem A Iguana, O Peixe Beta, O Camaleão e O Cavalo Marinho. A performatividade dessas bichas, todas estudantes do curso de Licenciatura em Dança da UFS, surge primeiramente do interesse que cada uma delas tem sobre os temas de gênero. Vamos a elas!
Mais conhecido no Brasil como a iguana, o iguana, como também é conhecido em outras partes do mundo pelo gênero masculino, reflete sobre o entendimento de masculinidade centrado em uma ideia de macho escroto, frágil e tóxico. A intenção é visibilizar um fenômeno impulsionado pelo padrão do que é ser homem, e nesse sentido, o que parece ser aceitável para essa ideia de masculinidade frágil, é que ela seja reforçada a partir de um imaginário de masculinidade que determina ao macho um comportamento agressivo, ofensivo e que sobretudo, valorize o poder e o tamanho do seu pau. Mas o iguana, Joanderson Costa, tem dois paus, sabia? E, no entanto, é um ser lânguido que gosta de comer flores, descansa com as patinhas para trás e é extremamente dócil, molinho... afeminado? Cultura e natureza são binômios insistentes e nos valemos deles quando é conveniente para defender ou criticar comportamentos. O iguana é um modo de criar uma fissura nos costumes de performar o gênero, pensando sobre as pressões que sofrem as bichas afeminadas quando mexem na ferida do machismo. Quem é um iguana afeminado sabe as dificuldades e a opressão que passamos na luta pela sobrevivência, seja na rua, no trabalho ou dentro de casa, onde por muitas vezes a opressão é ainda maior, também na própria comunidade LGBTQIA+. Desta maneira, expor a experiência pessoal enquanto gay afeminado é uma inquietação, uma sensação angustiante de corporalizar todas as relações e atravessamento das situações vividas e como o corpo em tal contexto, assume, se empodera e entende a cultura machista, despindo-se dos medos, da hipocrisia que nos submetem as situações da formalidade heteronormativa dos armários.
O Peixe Beta, Igor Nascimento, reflete as características alusivas a masculinidade frágil de um peixe aparentemente indefeso, mas que possui um instinto que se fosse racional poderia ser considerado abusivo, agressivo e intolerante, devido ao fato de ludibriar a fêmea com uma espécie de dança do acasalamento, exibindo a beleza de sua calda que parece um véu, para seduzi-la, e depois do acasalamento, o mesmo a expulsa de sua bolha e passa a cuidar dos ovos sozinhos. Já a intolerância e agressividade se deve ao fato de não aceitar outro peixe macho no seu espaço, a ponto de travarem uma competição intraespecífica (briga de machos) em busca de uma parceira para acasalamento. A performatividade do Peixe Beta se constrói em uma fricção entre a sedução e o abandono, prática muito recorrente em qualquer tipo de relação, inclusive entre as bichas, e uma ideia de que a beleza e a sinuosidade do movimento do peixe beta, contrariam o ideal romântico do belo pela imitação da natureza. Assim, o corpo aponta em cena distorções dos ideais harmônicos esperados na dança/performance.
A partir de sua experiência drag, Fabiano Oliveira, O Camaleão, entende a característica adaptativa do camaleão como uma maquiagem drag, que ao mesmo tempo em que se destaca do contexto, camufla uma identidade ao sobrepor outras. As possibilidades de performances de gênero na drag se manifestam através da montação com um intuito de desobedecer a algumas normas do universo drag, e assim, segue uma expressão conforme à fluidez de identidade subjetiva e plural de quem a faz. O camaleão se mostra símbolo nessa configuração drag, por apresentar múltiplas facetas, como as alterações físicas do seu corpo. Seja para camuflagem ou caça, assemelha-se as performances de gênero de uma identidade fluída, portanto, a montação se faz a partir de conflitos internos sobre autopercepção enquanto sujeite que foge da cisnormatividade de gênero. O processo de caracterização se funde com o surgimento da persona, que assim constitui uma drag Camaleão de múltiplas identidades.
No Cavalo Marinho, retratado por Keicyane Assis, aborda-se uma noção da cultura popular acerca da estrutura de composição dos grupos de Cavalo Marinho de Pernambuco. Esses grupos são tradicionalmente masculinos, muito embora dentro da manifestação haja mais de 70 personagens a serem representados, incluindo figuras masculinas, femininas e animais, que em sua maioria, satirizam as relações entre essas personas e o público. A representatividade dentro do universo animal, aborda o próprio cavalo marinho que em sua peculiaridade maior são os machos que engravidam e geram os novos bichos. Muito embora essa realidade só pareça peculiar dentro da racionalidade da bolha de percepção dos seres humanos, e apenas por isso não parece convencional. Mas quem disse que em regra geral é normal apenas às mulheres o dom de emprenhar e parir? Ou seria engravidar e dar à luz? O que é o normal?
Cultura animalesca e popular comungam ao retratar personagens femininos, ainda que algumas vezes possa ser interpretado artisticamente como personificação pejorativa, a encenação do agir feminino dentro da manifestação popular do cavalo marinho. É como se estes estivessem se manifestando dentro dos limites, de especificação, sociais do animal e não do homem. Mas finalmente, o que difere a fragilidade, sensibilidade e ações remotas entre homens e animais?
Será que o bicho cavalo marinho sabe que é macho? Quem determinou para o homem em sua racionalidade as características pontuais do ser homem, ser mulher e ser bicho? Há alguém neutro para ensinar sem defender apenas um dos lados? Considerando que o raciocínio parte da cultura popular, está intrinsecamente relacionado as convenções sociais, mais precisamente está inserido nessa sociedade com tamanha tradicionalidade e naturalidade que por vezes passa imperceptível aos olhos.
Entre todas na turma, essas foram as performances que encontrei similaridades para tratar não só das questões metodológicas, como também a presença marcante de uma animalidade que em minha opinião, em suas transgressões, conseguem desobedecer às noções de gênero. Para João Manuel de Oliveira no seu livro Desobediência de gênero de (2017),
As normas de gênero implicam uma visão binária dos sexos vistos apenas como masculino e feminino, sem qualquer outra possibilidade considerada saudável. Essas normas garantem um consequente privilégio para a consciência do gênero, por expressões de gênero adequadas a essas normas e que lhe garantem uma aparente sensação de imutabilidade. As performances de gênero partem dessas normas para se concretizarem ou para ressignificar, no caso de performances subversivas tais como a drag ou algumas performances queer (Oliveira, 2017, p. 28).
Evidentemente, as performances mencionadas nesse trabalho são processos iniciais que apontam caminhos desobedientes, no entanto, podem ganhar outros direcionamentos em seus percursos. O importante é salientar que ao refletir sobre o gênero, entendo que esse universo não se restringe ao binômio masculino/feminino e que há legitimidade no discurso performativo quando se trata da transcendência do humano.
É importante reforçar mais uma vez que esses processos de pesquisa também surgem do fazer marginalizado que ainda é, tratar sobre gênero em performances artísticas. Nossos corpos ainda sofrem muitas tentativas de abafamento do nosso discurso, sobretudo quando o corpo nu está exposto em cena. Há muitas privações e privatizações que incidem sobre os nossos corpos. As privações acontecem por um tipo de censura que limita a encenação ao determinar o espaço em que podemos ou não atuar e a parte do corpo que podemos ou não mostrar.
E nesse sentido as nossas metodologias são totalmente atravessadas pelo olhar puritano, religioso e normativo exercido por uma forte onda de conservadorismo que atravessamos atualmente, produzida pela direita extremista no país, que além de privar, privatizam os nossos corpos como bem explicam Leandro Collin e Rafael Leopoldo no prefácio do livro Pelo cu: políticas anais,
Para Deleuze e Guatarri, o ânus serve como modelo para a privatização. Trata-se do primeiro órgão a ser privatizado, a ser colocado fora do campo social e, assim, tem-se um desinvestimento do órgão e há a constituição de pessoas privadas, centros individuais, ou seja, pessoas globais, eus específicos e discerníveis. O ânus já não é mais investido coletivamente, mas desinvestido e privado. (Saez e Carrascoza, 2016, p. 13).
Pois bem, quero desprivatizar o cu e aqui não separo o cu da cueca e nem das calçolas, como já anunciado no comecinho do texto porque minimamente, é o ponto mais em comum que temos entre todes. As nossas metodologias não estão distanciadas de um posicionamento político porque os nossos corpos são políticos, as nossas escolhas são políticas e tudo isso também é fruto de uma construção social. A nossa função é tensionar as construções normativas que calam os nossos corpos e levar pra cena o que não está posto, o que não está dado, na tentativa de afetar, porque a nossa dança não tem começo, meio e nem fim. Afetar pelo afeto como sugere Mendonça e Moriceau,
Deixar-se afetar é permitir que entre em nós o que está sendo estudado e atribuí-lo em retorno. É muito provável que não seremos os mesmos no resultado final da pesquisa, a experiência nos terá transformado. A pesquisa é o encontro entre essas múltiplas construções e nela é impossível isolar para examinar, para estabelecer modelos à distância. Estamos sempre já afetados, bem como está aquilo que é por nós percebido. (Mendonça e Moriceau 2016, p. 86).
Afetar também porque somos A FE TA DAS (três palminhas)27 no sentido bem pejorativo da palavra porque é isso que nos ensinam os estudos queer28: tomamos para nós e fazemos de nome próprio, as injúrias sofridas diariamente por toda vida.
Essas colocações foram importantes para dizer que a sugestão do roteiro aplicado no processo criativo das performances, inevitavelmente são movidas por questões que são da vida dos criadores e o nosso eixo central é discussão de gênero. Isso quer dizer que as produções são posteriores a percepção do modo como essas pessoas são afetadas e refletem um olhar subjetivo, particular e idiossincrático em cada uma delas.
Enfim, vamos ao roteiro! Como havia dito antes, a partir da função do crítico genético, revisitei a performance a partir dos documentos de processo com o objetivo de identificar quais foram as referências criativas que motivaram a construção da cena, e para cada uma delas elaborei um item do roteiro.
Lista do Protocolo
1) O que são protocolos?
Essa era uma das questões que não existia na pesquisa e acabou se tornando um dos interesses centrais a partir dos processos criativos. Essa era uma pergunta-alerta para chamar a atenção sobre o risco que corremos em: ao criticar um protocolo, possivelmente construímos outros! Os protocolos aos quais estava interessado dizem respeito as condutas heteronormativas que, apesar de serem naturalizadas, não deixam de ser prescrições de um comportamento lido como ideal, sobretudo para quem vive uma masculinidade divergente da norma.
2) Um texto ou uma poesia, sua ou publicada, que fale sobre gênero. Pode ser um manifesto!
Em cena utilizo a gravação da minha voz em off e a voz de uma amiga espanhola, Pepa Chacón, lendo o contrato contrassexual de Paul B. Preciado. Uso também o manifesto pelo direito de ser um monstro de Susy Shock29 e vários fragmentos de áudios captados das conversas com amigues e da primeira banca de qualificação do meu doutorado.
3) Uma dança que você conheça e que você identifique que existem implicações de gênero.
Específicamente, eu usava elementos da Sevillana, que é uma dança do folclore espanhol, e da dança flamenca, que em um passado ainda presente, se fundamentou a partir de protocolos sexistas como o Código de baile da escola sevillana de Matilde Coral e o decálogo para o baile masculino de Vicente Escudero.30
4) Escolha um elemento nessa dança (preferencialmente) que você considere muito significativo na representação do gênero.
O elemento que elegi para o Protocolo.doc foi a bata de cola, muito usada na dança flamenca. A partir dela surgiram várias proposições de cena e de movimentos que não são os habituais no manuseio do elemento, como também a ressignificação da saia que se transforma em outros elementos durante a encenação.
5) Escolha uma música que fale sobre mulher/homem/trans/bi/ gênero...
Eu costumo chamar a trilha sonora do Protocolo.doc como ambiente sonoro. Digo isso porque existem muitos fragmentos de áudios variados assim como algumas músicas que atravessam a minha experiência com o flamenco e a minha nordestinidade. E todas elas estão ligas a algum tema de gênero.
6) Escolha imagens de poses femininas/masculinas/animais para criar transições.
Existe uma cena na performance que elaboro transições entre os imaginários do universo feminino, masculino e animal. O Protocolo.doc trata de um cabra macho, gay, nordestino, que desfila em cima de um par de patas artificiais.
7) Em cena, como você pediria alguém em casamento?
Há alguma diversão em cena, também! O casamento é uma quebra do discurso, sem que no entanto, haja um distanciamento tão largo das discussões. É muito mais uma outra janela discursiva que se abre e atravessa tangencialmente a performance.
8) Como você usaria uma música de carnaval?
O casamento que é feito em cena não acontece de forma habitual e reverbera em um bacanal, digo, carnaval! A música Frevo Mulher31 utilizada nessa cena, é uma adaptação para o flamenco feita por Eduardo Bertucci e é uma memória do último espetáculo de flamenco que fiz em Salvador em 2009 chamado, Entre Carmens e Severinas.32
9) Escolha uma música para dublar.
Essa é a maior referência drag do Protocolo.doc, é a expressão da política do corpo drag que reivindico em cena como mais uma ferramenta para discutir os corpos da diferença.
Essa lista foi compartilhada com o corpo estudantil de maneira que ela não fosse tida como um roteiro fixo, mas inevitavelmente pode ser entendida como um protocolo de criação. Seguimos as investigações elaborando etapas da lista e apresentando os processos em sala. Primeiro solicitei que todes buscassem definições para a palavra protocolo, discutimos sobre elas e como entendíamos essa palavra no âmbito dos estudos de gênero.
Em seguida solicitei os itens 2, 3 e 4 para que experimentássemos algum tipo de composição entre os itens a partir do material apresentado sobre eles. Da mesma forma procedi com os itens 5 e 6 e os itens 7, 8 e 9 ficaram opcionais, porque eles tratavam de motivos muito particulares na composição do Protocolo.doc e o tempo das aulas já não permitia mais tantas experimentações. Para as mostras de processo conversamos um pouco sobre dramaturgia da dança e lemos alguns artigos para que houvesse algum tipo de noção sobre como elaborar os elementos da cena.
Assim, as performances, A Iguana, O Peixe Beta, O Camaleão, O Cavalo marinho, surgem como um reflexo da metodologia da performance Protocolo.doc, mas cada uma delas tem seus próprios protocolos de conduta e autonomia em suas atuações. Ao final do componente discutimos o método com o intuito de entender se seguir o percurso feito por uma performance construída, poderia indicar um modo de transformar as discussões em corpo na construção da cena, sobretudo pelo fato de que, pensar o movimento fora do entendimento da arte como representação da natureza e do belo, é uma tarefa que tem como objetivo educar em mão dupla artista e espectador.
Concluo então que é importante que nós artistas professores universitários, juntamente com nossos estudantes, temos a tarefa incessante de revisitar os nossos fazeres lançando um olhar que vasculhe os nossos procedimentos, em função de exigir o entendimento do nosso fazer pela especificidade inquestionável da nossa área. Temos perspectivas metodológicas que não se resumem nos assuntos expostos nesse texto, e ainda que tenhamos uma possibilidade de seguir procedimentos como a InvestiCriação a Pesquisa Performativa ou a Crítica Genética, sempre será urgente entender que existirá uma metodologia para cada processo criativo em artes.
Digo isso porque entendo que não há prescrições ou protocolos suficientes que deem conta de atender as demandas dos seres criativos e suas infinitas subjetividades. Isso não significa dizer que não estamos preparades para nós mesmes, significa dizer que teremos que reinventar os nossos métodos a cada impulso criativo que rompa com o que já está posto e que exija do sistema do qual faça parte, a justa adaptação pela sua permanência. E é justamente isso que as performances de gênero reivindicam: a permanência, a sobrevivência! Sendo assim, qual é o método e a função da sua arte atualmente nesses tempos fluidos e de guerra?