La experiencia de la nominación de niños Guaraní como educación espiritual
DOI:
https://doi.org/10.17227/nyn.vol7.num51-13813Palabras clave:
nombramiento Mbya-Guaraní, niños, educación, espiritualidadResumen
Este artículo presenta algunos apartados reflexivos extraídos de la investigación postdoctoral desarrollada con los pueblos indígenas de la etnia Guaraní que viven en Rio Grande do Sul, al sur de Brasil. Se propone reflexionar sobre la educación y constitución del ser humano a partir de las cosmologías de este pueblo, buscando comprender estos procesos desde el ritual de nombramiento al niño guaraní, el chamanismo y los procesos que conducen a la transformación de la persona en animal, según la concepción amerindia. Con base en estas comprensiones, podemos ampliar la noción de espiritualidad en el contexto de la educación amerindia, así como profundizar en las investigaciones sobre la epistemología chamánica y la experiencia de la infancia, con contribuciones de la Psicología Jungiana. La investigación se desarrolló desde la perspectiva de estudios autoetnográficos con líderes y maestros guaraníes.
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RESUMO
0 presente artigo traz recortes reflexivos extraídos da pesquisa de pós-doutorado desenvolvida com os povos indígenas da etnia Guarani que vivem no Rio Grande do Sul, região sul do Brasil. Este tem como proposta refletir sobre a educação e a constituição do humano a partir das cosmologias desse povo, buscando compreender esses processos desde o ritual de nomeação da criança Guarani, do xamanismo e dos processos que levam à transformação da pessoa em animal, segundo a concepção ameríndia. Com base nessas compreensões, podemos ampliar a noção de espiritualidade no contexto da educação ameríndia, bem como aprofundar as investigações acerca da epistemologia xamânica e da vivência das infâncias, com aportes da Psicologia Junguiana. A pesquisa foi desenvolvida na perspectiva dos estudos autoetnográficos com lideranças e professores Guarani 1 .
Palavras-chave:
nomeação Mbya-Guarani, crianças, educação, espiritualidade .RESUMEN
Este artículo presenta algunos apartados reflexivos extraídos de la investigación postdoctoral desarrollada con los pueblos indígenas de la etnia Guaraní que viven en Rio Grande do Sul, al sur de Brasil. Se propone reflexionar sobre la educación y constitución del ser humano a partir de las cosmologías de este pueblo, buscando comprender estos procesos desde el ritual de nombramiento al niño guaraní, el chamanismo y los procesos que conducen a la transformación de la persona en animal, según la concepción amerindia. Con base en estas comprensiones, podemos ampliar la noción de espiritualidad en el contexto de la educación amerindia, así como profundizar en las investigaciones sobre la epistemología chamánica y la experiencia de la infancia, con contribuciones de la Psicología Jungiana. La investigación se desarrolló desde la perspectiva de estudios autoetnográficos con líderes y maestros guaraníes. 2
Palabras clave:
nombramiento Mbya-Guaraní, niños, educación, espiritualidad .ABSTRACT
This article presents some reflective sections extracted from the postdoctoral research developed with the indigenous peoples of the Guarani ethnic group, who live in the Rio Grande do Sul, in southern Brazil. It is proposed to reflect on the education and constitution of the human being from the cosmologies of this people, seeking to understand these processes from the ritual of naming the Guarani child, shamanism, and the processes that lead to the transformation of the person into an animal, according to the Amerindian conception. Based on these understandings, we can broaden the notion of spirituality in the context of Amerindian education, and deepen the research on shamanic epistemology and childhood experience, with contributions from Jungian Psychology. The research was developed from the autoethnographic perspective in studies with Guarani leaders and teachers.
Keywords:
Mbya-Guaraní naming, children, education, spirituality.Introdução
Os indígenas da etnia Guarani 3 constituem-se em várias parcialidades, conhecidas como Nandeva, Mbya e Kaiowá; o idioma falado pelos Guarani integra a família Tupi-Guarani, no tronco linguístico Tupi. As diferenças entre essas parcialidades podem parecer imperceptíveis para os não indígenas, mas para os Guarani são complexas - eles reconhecem o que os aproxima, como as histórias, a língua e as cosmologias, mas vão se diferenciando em aspectos como a organização social e familiar, a sustentabilidade econômica das aldeias etc. É uma das mais numerosas populações indígenas do Brasil, com cerca de 85 mil Guarani (Mapa Guarani Continental, 2016), em uma população total com cerca de 900 mil indígenas (IBGE, 2010). No Rio Grande do Sul, vivem aproximadamente 10 mil Guarani. Entre os povos indígenas que vivem nas terras da região sul do Brasil, são considerados pelos estudiosos como aqueles que mais preservam suas práticas espirituais tradicionais como fundamento de sua existência como Guarani, ao inventarem meios para compreender o mundo em sua volta e produzir processos próprios de resistência à colonização e de sustentar um modo de estar no mundo (Souza, 2019).
A investigação que temos praticado, com inspiração etnográfica e da pesquisa participante, vai dando-se junto com a vida. Este é um pensamento presente na epistemologia ou cosmogonia Mb-ya-Guarani que nos inspira a pensar a pesquisa, a teoria e a metodologia como investigação colaborativa. Essa constatação resulta de inúmeros ensinamentos, de diálogos com muitos intelectuais indígenas, de narrativas pautadas numa aprendizagem da palavra, enquanto um princípio mítico e científico, que funda a origem e a vida Mbya-Guarani. A escuta é o princípio que se dá na dança-canto-oração, a imagem de escutar cantando, de cantar-dançar-orar como uma escuta. Então, para escutar, ou melhor, para aprender a escutar, precisamos dançar-cantar-orar, estar num movimento que busca escutar a palavra primordial. Em todo ato há a possibilidade de escutar a palavra divina. Daí a importância da fala que Meliá (1991, p.70) sistematiza em "palavra escutada, palavra dita e palavra profética". A palavra profética é justa e boa, pois promove leveza, serenidade e amor recíproco, sentido maior da fala e da escuta. Tal fundamento implica um sistema de compreensão e de pensamento que objetiva dizer-se na palavra vivida, ou seja, uma forma de conhecer que é poder ser e não apenas viver.
É, sem dúvida, um exercício para pesquisadores poder refletir sobre uma epistemologia ou cosmogonia de pesquisa, de educação, de psicologia, na qual a busca de sistematização e de pesquisa se funda no ser. Estudar o humano para ser humano, estudar a ética para ser ético, estudar a leveza para ser leve, estudar a palavra para ser a palavra, caminhar para aprender a caminhar, perguntar para aprender a perguntar. Propor um caminho a partir de um espírito sensível, para ter esse campo de ressonância, enquanto modo de ativar o sensível no ato de pesquisar, tanto em si mesmo, quanto no outro, através do qual nos constituímos.
Ressaltamos em nosso percurso de pesquisa a experiência com a aldeia YvyPoty, da Barra do Ribeiro, no interior do Rio Grande do Sul, Brasil, e o contato de 20 anos com o intelectual indígena Vherá Poty, em rodas de conversas na Universidade de Santa Cruz do Sul e Universidade do Rio Grande do Sul, através dos Programas de Pós-graduação em Educação e do Departamento de Psicologia, com atuação conjunta na organização de eventos e produções escritas que nos fizeram aprofundar a relação entre espiritualidade, educação e a nomeação da criança Mbya-Guarani.
Esse contexto nos instiga a conhecer um pouco mais sua cosmologia, sua espiritualidade, e como repercutem nos modos de educação e de relacionar-se. E um momento importante dessa existência está na atribuição do nome Guarani às suas crianças.
No caso dos Mbya-Guarani, a atribuição do nome Guarani ocorre no primeiro ano de vida da criança e já traz em si o princípio da vida xamânica, uma condição na qual corpo e alma se conectam, em um contexto que propicia o diálogo com o humano divinizado. Essa perspectiva é uma das ideias que sustentamos neste artigo, que nos permite pensar essa experiência numa perspectiva cultural; cultura compreendida a partir de Kusch (2012), como uma produção de sentidos simbólicos realizadas de forma coletiva e que permite a cada pessoa realizar seus processos de subjetivação e humanização.
Ao partir do ritual de nomeação Guarani, ressaltamos a existência de um princípio no qual a alma busca um corpo, dentro de uma dimensão de pensamento mitológico e divino, em processos complexos de metamorfoses. Em ambas as dimensões, ocorrem encontros espirituais.
O fenômeno vivido e nomeado pelos Guarani como jepotá e o xamanismo ameríndio possuem uma dimensão processual. E esses dois aspectos assumem a centralidade destas reflexões, quando buscamos compreender o modo de educação Guarani, o qual ultrapassa as fronteiras entre o bem e o mal.
Nemongaraí: o princípio educativo na cultura Guarani
A fase inicial de vida é crucial para o percurso que cada Guarani vai assumir em sua caminhada existencial. Segundo Poty (2016), professor Mbya-Guarani, o processo de nomeação denominado nemongaraí é um ritual que acontece na opy, 4 na presença das crianças e das famílias, no qual o karaí 5 ou kunhãka-rai 6 escuta o nome das divindades que cada criança vai receber para orientar sua existência. Neste ritual, entre cantos e danças, a mãe apresenta seu filho ou filha, enquanto o karaí fuma um cachimbo e sopra a fumaça na cabeça da criança. Essa fumaça, também denominada tatachina, vai abrir espaço para o fluxo das belas palavras tradicionais que emergem da bruma originária para inspirar o nome da criança.
Outros elementos também fazem parte do nemongaraí, segundo Franco (2019), professor Mbya--Guarani da aldeia Yvy Poty, em Barra do Ribeiro, no Rio Grande do Sul, o pão denominado mbojapé 7 é levado para a cerimônia para ajudar na leitura que o karaí faz do nome da criança. O autor compara a função do pão a uma carta, na qual o karaí manda mensagem para Nhanderú 8 através do mbojapé. Essa cerimônia acontece quando a criança começa a andar e a pisar no solo, é o momento da afirmação de que deseja viver na terra. E todos ficam sabendo, através do nome recebido, porque essa criança veio para esse mundo. A leitura da carta é feita através da fumaça do cachimbo.
Esse ritual nos leva a pensar que há uma relação comunicacional entre os seres humanos e não humanos que compõe uma História simétrica. Como nos diz Latour (2000), nesse ritual, a relação entre a fumaça, o mbojapé, o karaí, a criança e as divindades metamorfoseiam-se e esses elementos tornam-se mediadores, enquanto tradutores que se redefinem e se desdobram desde a concepção da criança.
A educação da criança é um processo complexo de aprendizagem. Segundo Poty (2016), o choro da criança, ao nascer, está relacionado ao nervosismo dos pais, aos conflitos que vivenciam e aos cuidados que não observam durante a gestação. Segundo a tradição Mbya-guarani, os pais não podem usar colar, pulseira, porque o cordão umbilical pode imitar um colar. Nos primeiros três meses de vida da criança é preciso ter muitos cuidados, pois ela repete tudo o que os pais fazem. No primeiro ano de vida, a criança é dependente dos pais. É na cerimônia do nemongaraí, que os pais recebem orientação de como devem educar suas crianças. Cada criança deve ser educada de acordo com as orientações da divindade que inspira o seu nome Guarani. Em algumas situações, os rituais precisam ocorrer por até uma semana; em outras, são necessários alguns meses até o nome ser revelado. De acordo com Poty (2016), há outras energias presentes nesse processo, e que tentam ludibriar o karaíem seu processo de escuta do nome espiritual. Caso a criança receba um nome errado, terá problemas em sua saúde. Esses são processos que integram a cosmologia Guarani.
Para os Guarani, segundo Meliá (2010), o nome é a linguagem, a palavra e o dom da escuta. Ao longo de toda sua existência, cada um vai aprendendo a lidar com a escuta daquilo que seu nome evoca para si mesmo e para sua relação com a comunidade. O nome é espírito. A vida Guarani e sua perspectiva de saúde iniciam-se com a nomeação. Nessa cerimônia, para escutar o nome, ou o nheé, 9 o karaí tem um papel fundamental na intermediação e na escuta que realiza. Nesse ato, há uma profunda entrega e confiança do humano frente às lógicas divinas e da natureza. O karaí é uma pessoa que entende seu papel como ouvinte de uma mensagem divina, e propicia uma vivência potente para o fundamento do ser Guarani. O karaí ou a kunhãkaraí são indígenas mais velhos que detêm o poder de escutar e falar sobre o destino, a partir da imagem do nome da criança; e a criança, a partir desse momento, passa a ter a tarefa de guardar esse nome.
Quando buscamos compreender esse processo a partir da psicologia junguiana, o velho karaí que fala a partir da escuta da semente, da alma, nos lembra Hillman (2001), quando sugere uma relação ao chamado de cada um. O autor, em uma analogia com a semente de carvalho, nos diz que a semente já contém a árvore, a "sua" árvore, a sua singularidade, que já presente antes de poder ser vivida. Essa analogia nos ajuda a pensar sobre uma imagem inata que possui uma intenção angelical e remete ao chamado de cada um. Uma psicologia da infância na qual a alma escolhe a imagem que a criança vive e compreende que algo invisível cuida de cada um de nós:
Mas por que é tão difícil imaginar que se preocupam comigo, que alguma coisa se interessa pelo que faço, que talvez eu esteja recebendo uma proteção, quem sabe até minha vida esteja sendo mantida não apenas por minha vontade e meus atos? (Hillman, 2001, p. 22)
O fio condutor que integra as imagens da criança e do velho é a palavra-alma, o nheé, no ritual do nemongaraí. Durante o ritual, o Karaídeve permanecer muito atento para não ser perturbado por espíritos maléficos, que tentam impedir a escuta autêntica do nome enviado pelas divindades Jakairá, Karaí, Tupã e Kuaray. Cada uma dessas divindades envia nomes espirituais para guiar os Guarani que pertencem a cada uma delas. Cada divindade traz orientações de acordo com sua dimensão espiritual, e ajudam os Guarani a pensar suas vidas, origens e caminhos. Por isso, o ritual de nomeação poder durar vários dias, para que haja uma maior concentração na escuta do Karaí. Caso a escuta seja perturbada e erre o nome da criança, ela pode adoecer e até morrer; isso acontece porque a criança ouvirá vozes contraditórias da sua verdadeira alma e corpo. Por outro lado, caso o karaí consiga escutar o nome de maneira adequada, estará garantido o espaço de diálogo do Guarani com seu destino, com seu nheé.
Existem situações, como a relatada por uma Kunhãkaraí chamada Catarina (Menezes, Richter e Silveira, 2015), em que é preciso mudar o nome. Segundo dona Catarina, sua neta estava doente, e já havia sido tratada com recursos da medicina convencional ocidental e não se curava. A menina, então, afirmou que queria mudar seu nome, pois estava sendo chamada por um nome que não a pertencia, que não falava de sua alma. A comunidade compreendeu seu pedido e ajudou na mudança e, aos poucos, conforme afirmam: a menina foi recuperando sua saúde.
O ritual nemongaraí é um dos mais importantes para significação cultural da constituição do psiquismo Guarani. Este é um ritual de caráter coletivo, uma experiência de legitimidade para que cada um possa ao longo de sua vida, individualmente, viver a responsabilidade e compromisso com seu caminho, no sentido do Si-mesmo desenvolvido por Jung8 como um fio condutor que vincula o humano ao divino, o corpo à alma, a pessoa a sua realização, o nome ao espírito.
O nome-alma e suas relações com o espírito, o corpo e o animal
Para estar bem com seu nome, ensina Poty (2015), os Guarani educam para o Nhanderecó, 10 o modo de vida Guarani. A busca do Guarani é tornar-se humano. É uma dimensão descrita pelo autor como tekomarangatu, que tem a ver com o modo de ser espiritual, a relação com o divino. Já o tekokatu, é a regra e a consciência do que cada Guarani faz e deve fazer. Relata, ainda, que a expressão Guarani não é única, é composta a partir das ações existentes, do que vive. Não existe o verbo no infinitivo; só existe a ação com a pessoa, o sujeito. Trata-se de um sujeito que se orienta por regras bem definidas da cosmologia Guarani, como o tekoporá, as virtudes sociais que orientam os comportamentos individuais, como, por exemplo, as dualidades: ñe´ëjoja (palavra boa) e ñe´ëjoja’ÿ (palavra ofensiva); py’apotï (coração limpo) e py’amokõi (coração duplo) (Poty, 2015).
As dualidades são referidas como virtudes e seus contrários e, em Guarani (Poty, 2015), são denominadas como jeporuhe' ÿá-á, ou seja, o lado esquerdo, o negativo e inconsciente; e o jeporukuaa, ou o lado direito, o positivo e consciente. No modo de educação Guarani, a orientação é para o positivo, o consciente, mas sempre tendo a clareza de que a vida do Guarani é tekoaxy, ou seja, naturalmente imperfeita, como pessoas que se consideram imperfeitas. O esforço para a educação do positivo é maior e vai na direção do invisível, de aprender a lidar consigo mesmo no sentido de que a dimensão inconsciente ou animal não domine esse modo de educar.
Nessa percepção, Clastres (1990) afirma que o primeiro saber para o Guarani é o mbochy, aquele que diz que o sentido do mal advém do corpo, dos desejos. A criança é dominada pelo corpo, suas vontades e paixões, assim como o limite do corpo da criança é vivido com o nome, que simboliza a presença divina na pessoa, o espírito. Este é o princípio da educação Guarani, e Poty (2015) nos ensina que a dimensão positiva demora a se desenvolver, pois tem a ver com tornar-se ser humano e envolve o escutar os conselhos dos pais e dos avós. Já o lado negativo possui energias próprias. O negativo e o positivo fazem parte de cada um, assim como a condição que cada um vive em mundos paralelos, num mundo visível e invisível, que mostram o quanto somos reflexos do ser divino e imperfeito.
O corpo, como símbolo do desejo e da identificação com a matéria, necessita ser enfrentado e conhecido. Poty (2015) afirma que o negativo é o mais fácil de ser vivido, envolve a genética, é o natural; já o positivo é aquilo que é aprendido, um trabalho que cabe à educação. Encontrar o espírito requer aprender a conhecer a natureza corporal, trabalhar o corpo numa perspectiva xamânica, para que a dimensão espiritual possa ser vivida, com o assento do nome no coração e no corpo, vivido no cotidiano.
Quando o jeporuhe' ÿá-á domina (a dimensão negativa), ou seja, as ações são governadas por rancores, raivas, ciúmes, trata-se de um sinal de que está havendo uma vulnerabilidade emocional. Essa condição abre um campo para que os espíritos maléficos entrem em ação, desalinhando o nheé. Tal fenômeno, segundo Santos (2012), é caracterizado pelos Guarani como jepotá. Nessa condição, o Guarani é transformado em animal, assumindo sua substância, seu caminhar, seu corpo, seu comportamento, sua alma. Há uma mudança, inclusive de parentesco, pois o Guarani já não se identifica mais como humano, mas apenas como animal. Nessa condição, o Guarani vivencia uma condição que Viveiros de Castro (2002) refere como sendo o perspectivismo, que ocorre quando o indígena assume o ponto de vista do animal.
Quando um Guarani se encontra nessa situação, toda a comunidade percebe as mudanças de comportamento, que se caracterizam pelo isolamento, o estar na mata relacionando-se com os bichos, subindo em árvores e não querendo muito contato com os humanos se aproximarem. Já as dimensões físicas e espirituais desse processo são visíveis apenas para os orientadores espirituais da comunidade, o karaí ou a kunhãkaraí. Estes passam a orientar os pais para a realização dos rituais e, com o apoio da comunidade, passam a trabalhar para a cura do Guarani que está com jepotá.
Nessa condição, a vivência de não reconhecimento do próprio nome pode significar um estado simbólico, anunciado pelos Guarani como perda da alma e uma identificação ou metamorfose com o animal. Nas palavras de Poty:
Tu morre porque tu não é mais o mesmo. Você engana, ou seja, você finge que morre, daí você sabe que morre porque precisa renascer... é por isso que se torna um terror, porque o espírito renasce e destrói. Ele não é mais a pessoa, vai ter uma cabeça de animal. (2015, p.36)
Este fenômeno pode ser impulsionado pela educação dos pais, quando a pessoa é criança ou adolescente, e vive mais intensamente sua relação com os pais. Segundo Jung, a criança tem uma susceptibilidade grande ao inconsciente dos pais e ao inconsciente coletivo, o que pode gerar um psiquismo baseado nos conflitos dos adultos, fazendo com que este não encontre um espaço de construção de seu próprio mundo psíquico. Pode estar relacionado ao que os Guarani reconhecem como um afastamento do nhe'é e, por consequência, uma aproximação aos aspectos inconscientes do pai ou da mãe. Nessa perspectiva, tanto para os Guarani quanto para Jung, a criança absorve muitas informações para as quais não estão preparadas e nem têm condições para processar.
Na reza, durante o ritual, o karaí é capaz de ver essas entidades e o processo de cura se dá a partir da conexão com Nhanderú, que funciona como um arquétipo do Simesmo cultural, uma divindade ordenadora da comunidade com potência para diminuir a força desses espíritos, quando ainda é possível. O corpo de quem vive esse processo fica frágil, cansado, sem agressividade, às vezes, sofre desmaios e sente muito sono. Na medida em que essas entidades ocupam espaço, o corpo se fragiliza. O corpo é o lugar no qual esses aspectos são vividos. Nesse estado, tanto a pessoa como seus familiares são atormentados, enquanto envolvidos diretamente no processo de cura, juntamente com o karaí. Dessa forma, os familiares evitam chorar para não se enfraquecer e procuram manter uma atitude de força espiritual, demonstrando uma concepção de respeito, ao mesmo tempo, separação do que não deve estar junto, como pensar a relação entre inconsciente e consciente. Remetemos essa situação a uma reflexão feita por Poty, a partir do mito dos gêmeos Guarani, ou seja, do princípio fundador da existência Guarani:
Muitas vezes, a gente está entre o bem e o mal, e às vezes, o mal também nos ensina ser uma boa pessoa, o mal não necessariamente quer dizer matar, tanto que, claro, diante do mal, o bem sempre está além e nisso, às vezes há um encontro. O bem e o mal te tornam uma pessoa boa. Por isso, não quer dizer que amanhã, essa sede que o mal provoca, te faz bem, às vezes! Saber que, às vezes, ele tem outra intenção, que o bem não se torne mais frágil diante do mal, então, ele nunca perde, mas diminui sua força vital. Exatamente, por isso, que eu falo: não precisa necessariamente o mal te fazer mal, ou seja, dependendo do momento, porque ele pode te fazer bem, mas te torna mais frágil. (Poty, 2015, p. 32)
No mito dos gêmeos Guarani, descrito por Clastres (1990), a mãe dos gêmeos é devorada pelo jaguar e os gêmeos são criados pelos jaguares; as crianças são iludidas e pensam que os jaguares são seus parentes. Quando ficam sabendo da verdade, os gêmeos tentam matar os jaguares, mas não conseguem eliminá-los. Os jaguares passam a ser muito temidos e respeitados, desde então. Podemos relacionar os fundamentos do mito dos gêmeos ao jepotá, no sentido de que a pessoa vai se metamorfoseando na forma do viver do jaguar, num processo lento. Na história mitológica, os gêmeos não se transformam, mas passam a viver com seus hábitos e aprendizados.
Para os Guarani, quando esse fenômeno ocorre, as entidades estão querendo levar esse espírito e, com isso, o corpo vai morrendo lentamente. A relação que os Guarani mantêm com esses espíritos é de temor, respeito e de consciência de que essas entidades necessitam permanecer em seus lugares, onde não oferecem perigo. Esse pensamento revela uma postura adotada pelos Guarani que é de diferenciação de dimensões que falam de separações de entidades e espíritos, bem como de consciência destes processos
A lembrança do nome e das divindades originais protegem a criança desse estado de perda da alma, e que para os Guarani significa a morte. O estado de saúde é recuperado quando se dá o reencontro da alma ou do espírito com o nome dado pelas suas divindades. O nome Guarani é de grande importância, representa a vida, é o "fluxo das belas palavras, o fluxo substancial que une humanos e divinos" (Clastres, 1990, p.114).
Podemos considerar então, que realizar reflexões sobre a criança Guarani, seu nascimento, o ritual nemongaraí e das belas palavras, significa entrar no cerne da educação e do psiquismo Guarani. Esta é uma tarefa complexa pois envolve um diálogo com um pensamento ameríndio xamânico que extrapola a condição do humano como o único ser que fala e que possui história; envolve noções de escuta e da palavra.
A reflexão do ritual de nomeação Guarani e da relação animal, humano e espírito, com base no xamanismo, nos leva a pensar em uma experiência anômala com base arquetípica, na qual se estabelece o diálogo entre o consciente e o inconsciente, delimitada pela busca da alma.
Para os Guarani, esse ato de olhar e escutar um espírito para a criança, jovem ou adulto que está vivenciando a transformação para uma dimensão animal, pode indicar um processo de adoecimento sem volta. No entanto, para o Karaí a capacidade de escuta ou de visão desse mesmo espírito pode revelar a possibilidade de cura e de atuação xamânica. O processo de recuperação da saúde reforça os poderes de cura e de conhecimento desse xamã e, por consequência, significa o fortalecimento de toda a comunidade.
O Jaguar como símbolo xamânico em culturas ameríndias
A associação do jaguar ao xamanismo é parte das culturas ameríndias. Indígenas da Bolívia afirmam que o herói pode ser devorado pelo jaguar e realiza o combate com este, transformando-se neste animal. Já na Guatemala, há indígenas que se autodenominam "gente-jaguar", como descendentes de ancestrais jaguares, conforme explicitam Gutiérrez e Torres (2011).
Quando falamos sobre culturas ameríndias, precisamos considerar que existem aspectos que são semelhantes na América, assim como há especificidades próprias de cada cultura. Nesse capítulo, a partir da cultura Guarani, procuramos realizar um diálogo com o pensamento ameríndio, demarcando aspectos específicos e, também ampliando as reflexões a partir de outras etnias. Dessa forma, buscamos compreender estes fenômenos em uma dimensão educativa e psíquica.
Ao mesmo tempo em que Gutiérrez e Torres (2011) demarcam a relação tão estreita dos jaguares com os xamãs, também anunciam o quanto os espanhóis, ao longo da história de colonização da América, foram desqualificando as relações dos indígenas com estes símbolos, ao mesmo tempo em que associavam os xamãs e seus rituais ao demônio. Essa estratégia de colonização foi desqualificando aspectos culturais de grande conhecimento e que atualmente são resgatados como um encontro de enraizamento e fortalecimento da identidade na América, o que transcende territórios, e alarga tais símbolos como referências para pensar outros modos de existências e de pensamentos.
Segundo os mesmos autores (2011), a mitologia mexicana indígena revela que o jaguar está relacionado a aspectos como o da criação e da ordem universal e como uma força vencedora nos cataclismas universais. O xamã, ao morrer, passa pelas três dimensões de transformação - jaguar animal, homem e espírito, e o último representa o término de seu processo de metamorfose. A atividade xamânica, no contexto ameríndio, está relacionada ao poder do xamã de transformar-se em animal para poder transformar o animal em humano, sendo capaz de permear os diversos saberes, numa atitude sacrificial. O xamã, para Viveiros de Castro (2002), é aquele que passa pelo ponto de vista do perspectivismo, assumindo, ao mesmo tempo a imagem do sacrificador e da vítima. O xamã é o que se sacrifica. "É o próprio xamã quem atravessa para o outro lado do espelho; ele não manda delegados ou representantes... quando ele passa a ser o executor de vítimas humanas, o administrador dos sacrifícios alheios... ele deixa de ser xamã" (Viveiros de Castro, 2002, p. 469). No xamanismo vertical, diz o mesmo autor, o encontro é antropomórfico, ou seja, o xamã assume as feições do ancestral, do animal, identificando características humanas.
O jaguar, enquanto animal, não é muitas vezes o que provoca temor, como no caso dos povos Tikuna. O temor se dá em função do que existe entre o jaguar e o humano, ou seja, a presença das forças irracionais que vão dominando a pessoa que vai se metamorfoseando no animal. Da mesma forma, percebemos, na compreensão dos Guarani, que os desafios a serem enfrentados não estão no animal que é visível, mas nas fronteiras invisíveis e ameaçadoras simbolizadas pelo homem-jaguar. A relação entre jaguar e xamã, na dimensão jaguar-espírito, é de alteridade de alma, de complementariedade e de temor entre o humano e o animal.
Paralelo à concepção de xamanismo, trazemos a noção de sacrifício presente no complexo do xamanismo sulamericano, com os rituais de sacrifício e canibalismo descritos nos povos Araweté. Essa concepção produz, em seus efeitos simbólicos, na perspectiva da inversa de um ponto de vista:
Minha análise desse complexo terminou por defini-lo como um processo de transmutação de perspectivas, onde o devorador assume o ponto de vista do devorado e o devorado, o do devorador: onde o 'eu' se determina como 'outro' pelo ato mesmo de incorporar este outro, que por sua vez se torna um 'eu. Tal definição pretendia resolver uma questão muito simples: o quê do inimigo era realmente devorado? (Viveiros de Castro, 2002, p. 462)
Considerações finais
A imagem de um jaguar e o xamã relembram as energias criadoras e destruidoras, a imprevisibilidade das forças opostas, como a morte e a vida, o sol e a lua, o fogo e a água, o bem e o mal. A obscuridade é a primeira condição do surgimento do jaguar, o qual emerge da escuridão como luz, sol e, por isso, detém conhecimentos e tem uma existência anterior ao humano. Desta forma, mantém o temor e o respeito do humano como um ser que domina as forças invisíveis.
Na mitologia Guarani, no mito dos gêmeos, o jaguar é aquele que mata a mãe dos gêmeos, é o que estes não conseguem destruir. Os jaguares estão próximos das divindades e conseguem alcançar dimensões que atravessam as forças do humano, pois atravessam a morte.
Quem poderia conter essas forças para os Guarani? Nhanderú e as divindades protetoras que enviam as almas às crianças, a partir do nome de cada uma. O nome é o caminho organizador, de um movimento divino. Podemos pensar o nome Guarani como uma vivência xamânica, um processo de metamorfose que ensina a lidar com a força indestrutível e imprevisível do jaguar. Ao mesmo tempo, o jaguar animal e o divino protetor relacionam-se ao nome, à alma, ao chamado que cada Guarani recebe a partir da nomeação, e que não é fácil de ouvi-lo. Desde o princípio, o karaí, como xamã responsável para revelar o nome à comunidade e aos pais é testado nos desvios e distrações. Não basta ouvir, nem receber, cada Guarani precisa guardá-lo em seu corpo, assentá-lo em seu coração. Para isso, é preciso concentrar-se, proteger-se do mundo aquático e da mata, dimensões que os jaguares dominam bem, assim como a noite e a lua. Espaços de vulnerabilidade são dimensões emocionais negativas, através dos quais os jaguares habitam o corpo, roubam a alma e vencem a batalha arquetípica de seus reinos, o instinto puro que vira divindade.
A perda da alma possibilita, aos poucos, a metamorfose do humano em animal, a identificação com o bicho, a impossibilidade de simbolizar, de significar, de existir como humano, como palavra, como nhanderecó. Tornar-se um animal, sugere um aniquilamento, uma literalização de opostos e a não relação com esse, uma impossibilidade. Fortalecer o nome é olhar com olhos de jaguar, para além dele, que vê a condição essencial e se movimenta, defuma o corpo, vive o espírito vivo no fogo, assenta a alma no corpo e o nome no coração. É um centrar-se na condição de humano, a partir das próprias emoções. O jaguar e o Nhanderú são divindades que habitam moradas distintas, são duas facetas dos deuses que forjam o humano, são ordem e desordem, o medo e a coragem, uma consciência dual. O nome é a possibilidade da humanização, do diálogo que cada um pode fazer com seu espírito, sua palavra, sua origem.
Viver entre o jaguar e o xamã é viver entre os deuses, sendo humano, é posicionar-se de forma vertical, num eixo de terra e céu. É a aceitação do sacrifício como forma de viver a aventura de sua própria vida. Nem animal, nem divino, mas sempre entre eles, aprendendo a respeitar, a dialogar. Também, é a condição do limite da imperfeição que os Guarani tanto aceitam, de não se perceberem como deuses, nem como animal, mas de quem busca conhecer sua humanidade, seu nome.
Olhar para a cultura Guarani e pensar processos psíquico universais é voltar-se para o interno da América e da pessoa, reconhecer pensamentos próprios tão pouco valorados e sistematizados. É conhecer-se enquanto terra, enquanto seres que habitam o visível e o invisível do humano, o anômalo que compõe a polaridade de nossos arquétipos tão familiares, temidos e reconhecidos pelos indígenas, a partir do jaguar e do xamã. A partir dessas aprendizagens, podemos nos tornar mais capazes para os enfrentamentos diários, para evitar que nossa alma não se perca, ficando como angueri, uma alma sem morada, que vagueia inconsciente porque desconhece o jaguar como divindade; uma alma que ficou no entremeio, porque não escuta e nem fala sua palavra, conforme nos lembram os Guarani. Poder escutar Nhanderú é lembrar a morada originária, anterior à consciência, ao humano; é rememorar o lugar do seu nome para saber o caminho a ser seguido, a ser escutado.
Desta forma podemos pensar a nomeação Guarani como um contexto educativo e psíquico carregado de símbolos e de imagens que fazem os Guarani e todos nós a pensar e a dançar em territórios poucos conhecidos de nós mesmos e que podem nos levar a uma maior aceitação, tanto do ponto de vista pessoal, quanto na relação que estabelecemos socialmente com os indígenas e nossa América.
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