Reformas curriculares y contribuciones antropológicas en la formación de pedagogos en Brasil
DOI:
https://doi.org/10.17227/pys.num61-20332Palabras clave:
antropología, fundamentos de la pedagogía, plan de estudios, culturaResumen
En cada movimiento de reforma curricular llevado a cabo dentro de las carreras de Pedagogía, se percibe un conjunto de dificultades para identificar criterios objetivos para definir los aspectos fundamentales en la formación de pedagogos. Esta investigación teórica y bibliográfica analiza las transformaciones propuestas en documentos que resultaron en reformas curriculares brasileñas, rescatando las principales contribuciones del conocimiento antropológico en la formación de pedagogos en Brasil. Se recuperarán y presentarán aquí cuestiones que la antropología como ciencia social ha contribuido a lo largo de su historia con el objetivo de aportar criterios claros, científicos y objetivos sobre la importancia de incluir esta disciplina en los planes de estudio de las carreras de Pedagogía. Como principales conclusiones, identificamos un conjunto de cuestiones que sustentaron su inclusión y permanencia como disciplina a lo largo de su legado en discusiones específicas sobre cultura, diversidad, metodología de la investigación y sus discusiones sobre la infancia, lo que permitió identificar los innumerables desarrollos fundamentales en la reflexión sobre las prácticas pedagógicas y la posibilidad de desarrollar nuevas investigaciones en el campo de la Antropología de la Educación.
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Recibido: 29 de noviembre de 2023; Aceptado: 19 de abril de 2024
Resumo
Em cada movimento de reforma curricular realizado no interior dos cursos de Pedagogia, é perceptível um conjunto de dificuldades em apontar critérios objetivos para definir os aspectos fundamentais na formação dos pedagogos. A presente pesquisa de ordem teórica e bibliográfica analisa as transformações propostas em documentos que resultaram em reformas curriculares brasileiras, resgatando as principais contribuições dos conhecimentos antropológicos na formação de pedagogos e pedagogas no Brasil. Questões que a antropologia como ciência social contribuiu ao longo da sua história serão aqui recuperadas e apresentadas com o objetivo de fornecer critérios claros, científicos e objetivos, relativos à importância de inclusão da referida disciplina nos currículos dos cursos de Pedagogia. Como principais conclusões, identificamos um conjunto de questões que corroboraram para a sua inclusão e permanência como disciplina, por todo o seu legado nas discussões específicas sobre cultura, diversidade, metodologia de pesquisa e suas discussões sobre infância, o que nos permitiu identificar os inúmeros desdobra mentos fundamentais na reflexão sobre as práticas pedagógicas e a possibilidade de se desdobrarem em novas pesquisas no campo da Antropologia da Educação.
Palavras-chave:
antropologia, fundamentos da pedagogia, currículo, cultura.Resumen
En cada movimiento de reforma curricular llevado a cabo dentro de las carreras de Pedagogía, se percibe un conjunto de dificultades para identificar criterios objetivos para definir los aspectos fundamentales en la formación de pedagogos. Esta investigación teórica y bibliográfica analiza las transformaciones propuestas en documentos que resultaron en reformas curriculares brasileñas, rescatando las principales contribuciones del conocimiento antropológico en la formación de pedagogos en Brasil. Se recuperarán y presentarán aquí cuestiones que la antropología como ciencia social ha contribuido a lo largo de su historia con el objetivo de aportar criterios claros, científicos y objetivos sobre la importancia de incluir esta disciplina en los planes de estudio de las carreras de Pedagogía. Como principales conclusiones, identificamos un conjunto de cuestiones que sustentaron su inclusión y permanencia como disciplina a lo largo de su legado en discusiones específicas sobre cultura, diversidad, metodología de la investigación y sus discusiones sobre la infancia, lo que permitió identificar los innumerables desarrollos fundamentales en la reflexión sobre las prácticas pedagógicas y la posibilidad de desarrollar nuevas investigaciones en el campo de la Antropología de la Educación.
Palabras clave:
antropología, fundamentos de la pedagogía, plan de estudios, cultura.Abstract
In each curricular reform movement carried out within Pedagogy courses, a set of difficulties is noticeable in identifying objective criteria to define the fundamental aspects of the training of pedagogues. This theoretical and bibliographical research analyses the transformations proposed in documents that resulted in Brazilian curricular reforms, rescuing the main contributions of anthropological knowledge in the training of pedagogues in Brazil. Issues that anthropology as a social science has contributed to throughout its history will be recovered and presented here with the aim of providing clear, scientific, and objective criteria regarding the importance of including this discipline in the curricula of Pedagogy courses. As main conclusions, we identified a set of issues that supported its inclusion and permanence as a discipline throughout its legacy in specific discussions about culture, diversity, research methodology and its discussions about childhood, which allowed us to identify the countless fundamental developments in the reflection on pedagogical practices and the possibility of developing new research in the field of Anthropology of Education.
Keywords:
anthropology, fundamentals of pedagogy, curriculum, culture.Introdução
A formação de professores no Brasil constitui um campo de lutas e embates. Mais especificamente no interior dos cursos de Pedagogia, tanto na dimensão histórica (Gusmão, 1997) quanto na dimensão legal (Bissoli, 1999), temos um parâmetro do conjunto de questões que atravessam os currículos. Ao recuperarmos1 nacionalmente as reformulações legais mais recentes, temos a Lei nº 9394/1996 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), que resultou em um processo de descredenciamento do referido curso na formação de professores da educação infantil e do fundamental1 (criando o curso normal para tal finalidade). Após uma década, tivemos a Resolução CNE/CP 01/2006 (Ministério da Educação — MEC, 2006b), que regulamentou as Diretrizes Curriculares de Pedagogia no Brasil. Esse processo reverteu o movimento anterior, devolvendo para o curso de graduação em Pedagogia a formação de professores para os anos iniciais2 da educação básica.
No interior dos currículos dos cursos universitários, essas e outras modificações em lei induziram mudanças curriculares profundas e desafiadoras. Além disso, as referidas leis e resoluções que normatizam essas mudanças conduziram, em cada movimento de reforma, inúmeras horas de trabalho dedicados ao atendimento dessas mudanças, inúmeros debates e tensões no interior dos colegiados. Entre as diferentes discussões, um ponto importante diz respeito a um conjunto de decisões relativas a quais disciplinas devem permanecer, sofrer alterações ou mesmo serem retiradas do currículo. Como bem definem Mendes, Cardoso e Matos (2019), essas discussões não são, necessariamente, mediadas por questões acadêmicas curriculares. Questões como a formação dos professores que compõem cada colegiado, suas concepções de educação, ensino, aprendizagem e formação, seus interesses individuais e de carreira, imersos em cotidianos de disputas pessoais e divisões departamentais3, constituem ingredientes que acabam por pautar decisões curriculares. É esperado que, em algum momento dessas discussões, surjam questões como: Quais disciplinas e conhecimentos constituiriam algum nível de prioridade na formação do egresso em pedagogia? Quais disciplinas precisariam ser incluídas e/ou excluídas do currículo do referido curso?
Os cursos de Pedagogia no Brasil são responsáveis por formar profissionais que atuarão na educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental da escolarização brasileira. Os colegiados dos cursos vivem tensões sobre inúmeras questões, e, entre as mais recorrentes nos contextos de reformas curriculares, encontramos a dificuldade em estabelecer critérios teoricamente sustentados no que diz respeito às prioridades na formação dos pedagogos. Desde a década de 90, com as reformas do Estado brasileiro, forte mente orientada pelos ideais neoliberais4 (Malachen & Santos, 2020), um conjunto de princípios conduziram reformas em diferentes espaços institucionais, entre eles, no campo educacional. Materializados pela primeira vez na LDBEN posteriormente, na definição dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (PCN) (MEC, 1998), claramente ancorada no ideal pedagógico neoliberal. Disseminado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) no início dos anos 90, esse documento definiu desde então os quatro pilares da educação (aprender a aprender, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser). Na LDBEN temos a instauração, nas palavras de Malachen e Santos (2020 p. 4), uma base fundante do “pensamento pós-moderno e multicultural” com suas bases “relativista e utilitarista do conhecimento”, juntamente com “uma lógica de formação tecnicista e instrumental”. Duarte (2010) define precisamente esse movimento das pedagogias do “aprender a aprender”, juntamente com o que aponta Pereira (2014), p. 369), identificando um tipo de “ecletismo pedagógico” e princípios curriculares inclusive contraditórios, “em todos eles encontramos um dos princípios do projeto neoliberal para a educação, qual seja, a de desenvolver competências e habilidades capazes de tornar os futuros pedagogos/ as aptos às novas e múltiplas funções da nova escola”.
Além disso, identificamos uma ampliação do interesse de grandes empresas e conglomerados empresariais que passam a apontar para o campo da educação como uma importante fatia para a ampliação do capital. A educação brasileira passa, historicamente, a ser entendida de forma mais relevante como um negócio rentável, principalmente após a Organização Mundial do Comércio modificar a classificação da educação, que até então era definida como um direito, e passa a ser definida como um serviço, podendo assim ser comercializada como uma com moditie. O Slogan “aprender a aprender”, indicado por J. Delors na UNESCO, presente no relatório de 1996 na comissão internacional sobre a educação para o século XXI, materializa uma estratégia discursiva e ideologicamente orientada para a promoção de novas ações visando a promoção da autogovernança neoliberal. Essas transformações impactam diretamente a educação brasileira e as definições que vão ancorar a formação de professores no Brasil.
Posteriormente, acompanhamos no final do ano de 2009, a aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para a Educação Infantil, Resolução nº 5 de 17 de dezembro (MEC, 2009). Logo em seguida, tivemos a aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica, por meio da Resolução nº 4 de 13 de julho de 2010 (MEC, 2010a). Chancelando as bases da pedagogia das competências, temos em dezembro de 2017 a alteração da LDBEN possibilitando que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) fosse fundamentada dentro da concepção da Pedagogia por meio das dez competências gerais da Educação Básica.
Importante registrar que essa retomada histórica, que culminou em um conjunto de bases neoliberais na educação nacional, não foi resultado de amplos consensos e aceitação passiva. Inúmeros grupos sociais organizados, movimentos sociais e entidades nacionais5 representativas da área de educação tencionaram, resistiram e problematizaram esse ideário de diferentes formas. Sem essas lutas, o cenário poderia ser ainda mais difícil. Nesse sentido, esse legado histórico constituidor dos movimentos de reformas e definições e redefinições em lei atravessou o campo do currículo pedagógico no Brasil.
Na composição curricular dos cursos de graduação em Pedagogia no Brasil, espera-se contemplar um conjunto de disciplinas e conhecimentos que apontem para a formação almejada do pedagogo. Essa composição será fundamental na construção de uma identidade curricular ou mesmo uma habilitação específica em cada instituição. Reconhecemos que o currículo é atravessado por inúmeros elementos e critérios, alguns mais explícitos e outros nem tanto, mas todos, inegavelmente, relevantes para compreender que as reformas curriculares são atravessadas por relações de poder (Ribeiro & Azevedo-Lopes, 2017).
Visando contribuir nessa discussão curricular de forma mais alargada, a pesquisa em tela apresenta um conjunto de questões teóricas e epistemológicas, resultantes de uma pesquisa maior6, que se desdobra no recorte específico relativo ao papel e o potencial dos conhecimentos oriundos do campo das Ciências Sociais no currículo dos cursos de graduação em Pedagogia. Nos avanços dos resultados preliminares da pesquisa em andamento, identificamos o papel que os conhecimentos antropológicos ocupam nos currículos da Pedagogia, com especial atenção.
Na recuperação de mapeamentos nos currículos dos cursos de Pedagogia, tal como identificou Garcia (2019) em sua pesquisa7 no Rio Grande do Sul e, mais especificamente, nas pesquisas de Albuquerque (2013) e Albuquerque, Rocha e Simão (2018) em nível nacional8 analisando os currículos do curso de Pedagogia ofertados em universidades públicas, uma constatação comum se destaca:
A partir dessa trajetória (curricular) a Pedagogia passa a buscar a ampliação do diálogo com as diversas áreas do conhecimento necessárias à compreensão do fenômeno educativo em sua complexidade histórica, social, cultural e política. Admitindo a insuficiência de uma única ciência, estuda a educação recorrendo às contribuições da História, Sociologia, Filosofia, Psicologia, Antropologia, Política e quantas mais forem necessárias para depreender e compreender de forma mais ampla o universo educacional. (De Albuquerque, 2013, p. 46).
Em especial, no campo dos fundamentos teóricos da educação, para além da presença de disciplinas de ordem histórica, filosófica, sociológica e de pesquisa, identificamos uma área do conhecimento, ainda pouco discutida na formação dos professores que atuam no referido curso. Identificar a importância e a relevância que as discussões antropológicas ocupam ou precisariam ocupar na formação dos estudantes oriundos dos cursos de graduação em Pedagogia, será nosso objeto de discussão e aprofundamento no presente artigo.
Antropologia e Educação
Afastando a presente pesquisa de qualquer simplificação opinativa, alicerçada em concepções equivocadas sobre o papel e a presença das disciplinas de fundamentos no interior dos currículos de cursos de Pedagogia, que facilmente se desdobra em simplificações relativas as suas contribuições para o campo educacional. Essas concepções, muitas vezes, se devem a uma imagem que se tem do antropólogo e da própria antropologia, definida por Oliveira (2014) como a de um pesquisador que realizaria sua investigação longe de casa, pesquisando um povo “exótico” com foco em aqueles que vivem na floresta, isolados da cultura do pesquisador, dentro de outras culturas e sociedades, pesquisando sempre os “outros” povos longínquos. Essa concepção constitui uma ideia preconcebida de antropologia que efetivamente existiu no princípio da sua construção como ciência, no início do século XIX, onde buscava estudar o diferente, se familiarizar com o estranho (Velho, 1978). Essa percepção congelada no tempo não acompanhou os movimentos posteriores, que poderíamos chamar de movimento da constituição de uma antropologia at home (Peirano, 2006). O movimento que direcionou o foco inicial para a ampliação das pesquisas antropológicas voltadas para as sociedades e culturas que os próprios pesquisadores vivem e compartilham. Ou seja, na história do desenvolvimento antropológico, o que começou com a antropologia se familiarizando com o estranho resultou em um movimento pelo estranhamento do familiar (Velho, 1978). A própria Antropologia Urbana no Brasil (Velho, 2011), ilustra precisamente esse movimento que culminou, entre outras coisas, na emergência da antropologia da educação no Brasil.
Da mesma forma, a pesquisa etnográfica, criada e difundida como método pela antropologia e aprimorada pelas próprias pesquisas antropológicas, volta-se para os espaços escolares, constituindo o movimento da etnografia escolar iniciados na década de 70 do século passado. O estudo do espaço escolar e, de forma mais ampla, do fenômeno educacional, passa a ser realizado também pelos antropólogos, emergindo com maior força nas últimas décadas, trazendo importantes contribuições na concepção do espaço escolar como espaço de múltiplas culturas, a escola e seus nativos.
Esse movimento, iniciado por antropólogos culturais norte-americanos como Franz Boas (1911) , Margareth Mead (1928; 1930; 1935), Ruth Benedict (1934; 1946), seguidos de outros clássicos da antropologia, realizaram importantes contribuições, já devidamente discutidas e identificadas nas pesquisas de Gusmão (1997) , Rocha e Tosta (2022) ; 2017, que aproximaram a pesquisa antropológica do campo educacional, juntamente com as pesquisas antropo lógicas, materializadas pelas práticas etnográficas realizadas no interior dos espaços escolares.
Essa aproximação inicial da pesquisa antropo lógica do campo da pesquisa educacional, por si só, permitiu discussões mais profundas sobre pontos que não eram discutidos até então, tal como Azanha (1992) ilustra com sua denominação precisa de “abstracionismo pedagógico”, questionando os discursos vigentes que tentam definir as práticas educativas por elementos e interpretações biológicas e genéticas9. Ou mesmo a definição de Macedo (2010) consolida uma posição importante nas pesquisas posteriores, que definiram a escola como ambiente de não neutralidade cultural. Assim, a discussão sobre o potencial da antropologia na pesquisa escolar aproximou seus conhecimentos e métodos, não apenas na produção de pesquisas, mas no reconhecimento dessas contribuições na formação dos pedagogos nos cursos universitários.
Buscando recuperar essas e outras contribuições que a pesquisa antropológica oferece na formação pedagógica, materializadas pela sua presença ou manutenção como disciplina nos currículos dos cursos de Pedagogia, reuniremos aqui um conjunto de elementos acadêmicos, científicos e formativos, visando responder à problemática: quais contribuições que os conhecimentos produzidos no interior do campo antropológico apresentam potencial formativo relevante na formação de pedagogos no Brasil?
Ao recuperarmos, por exemplo, o papel da antropologia desde o movimento da Escola Nova (Oliveira, 2013), ganha destaque, principalmente no que diz respeito ao seu papel na formação dos professores. Esse processo se deu no espaço escolar, antes mesmo de se consolidar no espaço universitário. Oliveira afirma que“não podemos encará-la como um pedaço menor da história da Antropologia brasileira. Encontramos aí um cenário de institucionalização da Antropologia, voltado para o processo formativo de professores, que antecede sua presença nas universidades” (2013, p.33). Juntamente com as contribuições mais recentes de Oliveira (2023), que discute o papel da Antropologia na formação de professores, e de Vieira e Badia (2023) sobre o ensino de antropologia nos cursos de pedagogia, temos a exata identificação histórica da consolidação da Antropologia como conhecimento que se estabelece como fundamental na formação de professores e tece contribuições significativas na ampliação da concepção de educação, ensino e aprendizagem.
Começaremos apresentando a realidade curricular da Pedagogia nos cursos oferecidos em universidades públicas brasileiras, no que diz respeito à presença da Antropologia em suas diferentes denominações disciplinares, para, posteriormente, discutir como os conhecimentos antropológicos poderiam contribuir na formação dos pedagogos de forma específica.
A presença da antropologia no currículo da Pedagogia
Desde a década de 90, Neusa Maria Mendes de Gusmão (1997) apresentava a realidade vivida na Faculdade de Educação da UNICAMP e já identificava os confrontos entre os campos da Antropologia e da Educação. Um tipo de tensão manifesta nos compartimentos de saberes estanques, acabavam por atribuir à Antropologia a condição de ciência e à educação a condição de prática. Os professores que atuavam em cada um desses dois campos, acabavam por vivenciar e protagonizar esse atrito, muitas vezes mediados por pré-noções e práticas reducionistas, calcadas por um desconhecimento mútuo sobre o campo de conhecimento do outro. Ao mesmo tempo, identificou que “se há muitas coisas que nos separam - antropólogos e educadores -, há muitas que nos unem” (Gusmão, 1997, p. 9). É exatamente esse potencial de aproximação entre a antropologia e a educação, nascida de uma tensão inicial, que representa um inegável potencial para a formação dos pedagogos, como pretendemos apresentar.
Esse atrito inicial foi, ao longo das últimas décadas, em parte superado pelo intercâmbio metodológico e nos resultados ricos das pesquisas publicadas, conquistas importantes na formação de professores e na compreensão da realidade escolar por outras percepções e problematizações. Paula Carvalho (1982; 1984) por exemplo, recupera a inserção da Antropologia no currículo da Pedagogia no Brasil, datada em 1980. Desde a sua inclusão, sua permanência nos currículos não se estabeleceu facilmente. As pesquisas realizadas há mais de uma década com Sartori (2010) e Oliveira (2012) identificaram a presença significativa da Antropologia no currículo dos cursos de Pedagogia no Sul do país e na região Nordeste, respectivamente.
Nos resultados da pesquisa de Albuquerque (2013) , p.102, a presença da Antropologia como disciplina nos currículos de Pedagogia alcança 38,8% de frequência nos currículos analisados. A nomenclatura das disciplinas aparece com poucas variações: “circunscritos à Antropologia, Antropologia Cultural e Antropologia da Educação” (p. 121). Esses dados são importantes para compreender o atual papel deste campo do conhecimento nos currículos das universidades públicas brasileiras. Porém, qual seria o diferencial dos cursos que garantem a disciplina no currículo da Pedagogia? Vamos percorrer alguns dos pontos que na presente pesquisa, se mostraram mais relevantes, capazes de constituir critérios claros dos avanços formativos para professores e pesquisadores do campo pedagógico.
Antropologia e educação: contribuições formativas
A Antropologia, com seu legado de referências, conceitos e metodologias, carregou para dentro das pesquisas educacionais inúmeras contribuições. No plano geral, é possível identificar a ampliação na percepção mais alargada do fenômeno educativo. Superando a ideia de instrução escolar como contexto educativo, reconhecendo as inúmeras conexões com outras instituições, grupos culturais de diferentes espaços sociais que, inegavelmente constituem novas dinâmicas educativas fora do espaço escolar formal. Esse processo inaugura o ingresso de um novo código interpretativo, que levaria consigo outras linguagens e conceitos para discutir a educação. Um movimento interpretativo novo, chamado por Dauster (2003) de “um saber de fronteira”.
O olhar antropológico agregaria novas ferramentas de percepção e compreensão, possibilitando o reconhecimento da necessidade de educar dentro de um processo de desnaturalização10 da realidade. Conferindo diferença entre elementos biológicos/ naturais dos comportamentos adquiridos por meio da cultura, definidos por Dourado (2019) com a necessária demarcação clara entre natureza e cultura. Esse reconhecimento de condutas naturalizadas revela o que antes era percebido como uma espécie de homogeneidade11dos estudantes, passando agora a serem reconhecidas nas suas diversidades socioculturais (crianças brancas, negras, quilombolas, indígenas, rurais, urbanas, pobres, marginalizadas, estigmatizadas, etc). O mesmo vale para as infâncias e seus inúmeros contextos culturais. Gusmão (2006) reconhece ainda que, somente com a capacidade de perceber as diferenças culturais pelo olhar antropológico, foi possível tornar consciente como essas diferenças hierarquizam saberes, excluem os já excluídos e reforçam estruturas culturais dominantes.
Retomando a discussão do contexto de uma reforma curricular, é esperado que colegas de outras áreas do conhecimento aleguem que trabalham com cultura e com as diferenças culturais nas demais disciplinas, o que reduziria a relevância da Antropologia no currículo. Afinal, conforme Gusmão (2017, p.22), “não é possível tratar da educação sem falar em cultura e não se pode falar em cultura sem considerar a educação”. O ponto aqui em discussão, não é defender o campo afirmando que somente a antropologia seria capaz de discutir as culturas, mas que as discussões culturais e seus desdobramentos metodológicos, conceituais e teóricos, oriundos do campo de pesquisa antropológica e discutidos em disciplina específica da Antropologia, possuem características e contribuições diferentes de como as demais disciplinas do conhecimento oriundas do campo pedagógico discutem o referido tema. A disciplina de Currículo, por exemplo, discute questões culturais que atravessam o currículo escolar. Porém essas discussões não serão as mesmas que serão trabalhadas em uma disciplina de Antropologia da Educação. É preciso dizer que nunca será suficiente que a palavra cultura esteja contemplada em outras disciplinas do currículo para que a Antropologia perca sua relevância formativa. Como bem define o antropólogo Franz Boas na obra Vida Moderna e Antropologia (1986, p. 184), a “antropologia lança luz sobre o problema da educação de maneira inteiramente diferente”.
Importante, neste ponto da discussão, apresentar de forma clara essa aproximação entre as pesquisas e as contribuições teóricas da antropologia no campo de pesquisa educacional. As Ciências da Educação constituem um campo autônomo e consagrado (Libaneo, 2001; 2021; Da Silva Moreira & Franco, 2024), repleto de pensadores, métodos de pesquisa e contribuições fundamentais para o campo educacional. Nessa discussão, não estamos retirando esse conjunto de conquistas e a autonomia do campo educacional, definindo a Antropologia como uma espécie de “pilar central” na formação do curso de Pedagogia. Mas sim identificar as contribuições dos conhecimentos antropológicos na formação dos pedagogos e como a Antropologia pode fortalecer essa formação, oferecendo outras contribuições teóricas, conceituais e metodológicas que foram produzidas no campo antropológico e que são muito ricas na formação pedagógica.
Passamos assim a apresentar o potencial que as referidas definições, apresentam ao serem inseridas no interior de uma disciplina de Antropologia, ministrada por um(a) antropólogo(a) no interior do currículo da Pedagogia. Os contornos que a presente discussão apresenta não pretendem esgotar os potenciais desse campo do conhecimento científico, mas sim apresentar um conjunto de critérios claros que reforçam a importância dessa contribuição.
Diversidade cultural
Quando falamos de diversidade cultural, é muito comum alcançarmos apenas a superfície dessa discussão, afirmando que é importante reconhecer as diferenças culturais. Essa concepção sustenta uma crença ingênua que bastaria aos professores uma vontade ou uma boa intenção para que tal postura se consolide nas práticas pedagógicas. Assim, qual quer professor capaz de despertar essa vontade de reconhecimento permitiria que as diversas culturas fossem automaticamente acolhidas no espaço educacional. Na perspectiva de aprofundar essa dimensão, a antropologia nos permite reconhecer tendências inconscientes e homogeneizantes frente à diversidade cultural na educação, e ter elementos teóricos e conceituais que fundamentem uma postura mais profunda e complexa capaz de reconhecer a diversidade.
Como já apontamos, a educação é atravessada profundamente por relações de poder e, muitas vezes, orientada por demandas de formação para o mercado de trabalho, empobrecendo a formação intelectual e crítica. Assim, perde-se de vista a importância do como trabalhar com a diferença e a diversidade, como reconhecê-la e como amplificá-la. Nesse sentido, a antropologia e seu legado de teorias e pesquisa reconhecem, desde a sua constituição, a necessária superação do etnocentrismo cultural (Brasão, 2014). O reconhecimento das diferenças culturais passa por uma formação teórico-conceitual no sentido de frear o movimento automático e inconsciente que a própria cultura tende a constituir, uma espécie de ordem etnocêntrica
O etnocentrismo, em outras palavras, trata da observação e entendimento de um determinado povo ou grupo social a partir de valores absolutos, definidos pela sociedade em que o observador está integrado. Reconhecido como como conceito teórico no início do século XX, porém, como prática e concepção automática do agir, seria elemento explicador de inúmeros processos de exclusão, exploração e extermínio de diversos povos e etnias. Ainda hoje, a prática etnocêntrica legitima o processo de exclusão dos ditos ‘diferentes’, como grupos com características comuns em relação a nacionalidade, orientação sexual, religião, entre outros. Segundo define Meneses (1999, p. 13):
Etnocentrismo é um preconceito que cada sociedade ou cada cultura produz, ao mesmo tempo que procura incutir, em seus membros, normas e valores peculiares. Se sua maneira de ser e proceder é a certa, então as outras estão erradas, e as sociedades que as adotam constituem “aberrações”. Assim o etnocentrismo julga os outros povos e culturas pelos padrões da própria sociedade, que servem para aferir até que ponto são corretos e humanos os costumes alheios. Desse modo, a identificação de um indivíduo com sua sociedade induz à rejeição das outras.
Conforme bem define Gusmão (1997) , a antropologia, no seu desenvolvimento como ciência, buscou, entre outras coisas, superar o mundo intersubjetivo, identificando a necessária superação da visão etnocêntrica. Essa consciência de superação do imediato, do diferente que é hierarquizado e rejeitado, só foi possível pelo contato entre os povos do Ocidente (que se definiam como civilizados) e os demais povos do mundo (definidos como primitivos, bárbaros, etc). Esse primeiro contato entre diferentes culturas, sem as reflexões antropológicas existentes nos dias de hoje, implicou em distorções sobre como essas culturas e esses povos viviam. Por isso, se faz importante o estudo dos distintos conceitos de cultura e de antropologia ao longo da história da pesquisa cultural. Pois, sem isso, facilmente essa postura etnocêntrica acaba por emergir na percepção das diferenças culturais no interior do espaço escolar.
Esse amadurecimento intelectual, realizado no interior do campo de pesquisa antropológica, hoje construído e consolidado, permitiu a superação do etnocentrismo pelo relativismo cultural12. O movimento de observação e entendimento de um deter minado povo ou grupo social, dentro do complexo cultural daquele povo, sem julgar, comparar ou hierarquizar aquela cultura. O estudo do outro, do diferente, dentro de concepções, valores e significações do mundo, são relativos ao contexto cultural, social e histórico em que foi construído. Assim, a recuperação da riqueza interpretativa das diferenças culturais existentes entre cada grupo social, cada classe social, região e comunidade inegavelmente se faz fundamental também para a formação de professores. Essa posição não constitui um princípio moral, mas uma postura intelectual de percepção das raízes sociais e culturais das condutas, que precisam ser anteriores ao julgamento apressado das condutas muitas vezes entendidas como “escolhas pessoais” (Batallán, 2007).
Esse legado de possibilidades interpretativas que apontam para o reconhecimento e entendimento das diferenças culturais supera a concepção moral de empatia e, determinando, de forma mais ampla e profunda, a impossibilidade de designar verdades ou valores absolutos. A riqueza dessas possibilidades no espaço escolar é inegável. Como já definimos, é mister a capacidade fundante de professores serem capazes de reconhecer a diversidade cultural existente no espaço escolar por meio do olhar antropológico, ou seja, valorizar e potencializar da forma mais humanizadora na troca com seus estudantes. A escola, a sala-de-aula e a realidade social vivida por seus estudantes e pelos próprios professores é reconhecido como uma capacidade sinequanon para a efetivação de uma educação multicultural. Nesse sentido, a educação se daria em todos os espaços sociais, atravessados por mediações culturais que formam os sujeitos dentro de parâmetros específicos dados pela cultura e contexto cultural que o cerca.
Nesse processo de reconhecimento de uma diversidade que é, na grande maioria dos casos, invisível para o olhar desatento e sem uma formação antropológica básica, poderia conduzir a uma postura etnocêntrica e reprodutora das mesmas hierarquias culturais preconceituosas existentes na sociedade. Pedagogos e pedagogas não seriam diferentes disso. Mais especificamente no espaço educacional formal, por exemplo, os danos causados por práticas pedagógicas que não reconhecem a diferença, mas, pelo contrário, acabam por tentar homogeneizar diferenças, reproduzem de forma automática os critérios do que é considerado “cultura legítima”, uma espécie de “cultura erudita” que a escola tradicionalmente conserva. Poderíamos apontar desde exemplos simples e cotidianos, materializados por preconceitos linguísticos, estilos musicais considerados melhores que outros, uso de gírias, formas de falar, andar e existir, até as mais complexas, como a tentativa do apagamento das diversidades de gênero e orientação sexual, movimentos culturais de luta que reivindicam seu espaço de fala e de respeito das suas raízes, tais como o movimento negro, indígena e das mulheres, religiosos que atravessam o cotidiano escolar. Sem a devida formação intelectual, por meio da consciência de uma mediação relativista cultural mais elementar, os pedagogos tenderão a reproduzir e excluir esses e outros traços da diversidade cultural.
Etnografia como concepção de pesquisa
Ao falarmos da importância da etnografia nas pesquisas educacionais, temos a tendência de entender a etnografia como uma técnica emprestada da antropologia. Essa postura utilitarista é bastante criticada (Gusmão, 2015), já que simplifica e interrompe as demais dimensões da pesquisa cultural. O que conduziria a uma separação entre a prática de pesquisa com os processos de interpretação dos dados.
Segundo Gusmão (2015) , seria necessária a com preensão do papel da etnografia e dos conhecimentos antropológicos como “um profundo e significativo processo de reflexão epistemológica” a produzir conhecimento (p. 33). Afirma ainda que, “este outro olhar, que evoca o uso da etnografia dentro do campo da educação ou outro qualquer, não pode reduzir essa ciência a uma técnica” (p. 33). Em pesquisa anterior, Gusmão afirma que é preciso “tratá-la como uma opção teórico-metodológica, (...) (que) implica conceber a prática e a descrição etnográficas ancoradas nas perguntas provenientes da teoria antropológica” (Gusmão, 1997, p.41). Esse processo fica ainda mais claro quando retomamos a explicação de Laplantine ao falar sobre a conexão que a construção da pesquisa antropológica se estabelece dentro de três níveis de consolidação da produção do conhecimento:
A etnografia, a etnologia e a antropologia constituem os três momentos de uma mesma abordagem. A etnografia é a coleta direta, e a mais minuciosa possível, dos fenômenos que observamos, por uma impregnação duradoura e contínua e um processo que se realiza por aproximações sucessivas. (...) A etnologia consiste em um primeiro nível de abstração; analisando os materiais colhidos, fazer aparecer a lógica específica da sociedade que se estuda. A antropologia, finalmente, consiste em um segundo nível de inteligibilidade: construir modelos que permitam comparar sociedades entre si. (2007, p. 25, nota 7).
Assim, o ponto que justifica o resgate da etnografia dentro de uma compreensão que liga, de forma profunda, o método de pesquisa com toda a construção analítica dos dados e suas contribuições de cunho epistemológico. É necessário superar a ideia de que etnografia é uma mera descrição do que foi visto pelo pesquisador em campo (técnica pragmática), com uma nova compreensão que mobiliza a necessidade de acessar os conhecimentos produzidos pela Antropologia, para se questionar o que se escreve, por que e como se realiza a análise dos relatos construídos em campo e suas possibilidades de diálogo com as teorias e conceitos antropológicos no campo educacional. Segundo definem Mattos e Castro (2011, p. 45):
Fazer Etnografia, (...) é dar voz a uma minoria silenciosa; é caminhar em um mundo desconhecido; é abrir caminhos passando das contingências para a autodeterminação, para inclusão na escola, na vida social, no mundo da existência solidária e cidadã. Fazer Etnografia é um pouco de doação de ciência, de dedicação e de alegria, de vigor e de mania, de estudo e de atenção. Fazer Etnografia é perceber o mundo estando presente no mundo do outro, que parece não existir mais.
Voltando à discussão para a realidade curricular, não bastaria apresentar a etnografia como técnica, por exemplo, em uma disciplina de Pesquisa e Educação, sem que se possa dar a oportunidade de religar a etnografia com a etnologia e com a própria antropologia da educação. Como define Gusmão, “tratá-la como uma opção teórico-metodológica, (...) (que) implica conceber a prática e a descrição etnográficas ancoradas nas perguntas provenientes da teoria antropológica” (1997, p. 41). Esse processo rico e de grande ganho formativo para professores- -pesquisadores, só seria possível com a garantia da Antropologia como disciplina obrigatória no currículo da Pedagogia.
Alteridade e diversidade cultural
A alteridade pode ser definida como uma das utopias a serem buscadas na postura do antropólogo. Uma espécie de “terra prometida” (Gusmão, 1997). Essa definição, de forma geral, consiste no desafio de se colocar no lugar do outro, ser capaz de ver e enxergar o que o outro vê e enxerga. Compreender, como pesquisador ou pedagogo, um conhecimento imerso em uma cultura que não é nossa, dentro do desafio de entender uma realidade cultural que não nos pertence, mas sim aos pesquisados e alunos. Ao olharmos a contribuição da antropologia na discussão da diversidade cultural, a alteridade constitui um ponto muito mais profundo da forma com que se trabalha a diversidade (relação entre o eu e o outro). Ou seja, um movimento muito mais profundo e potencial para a formação pedagógica.
Desde a origem das primeiras pesquisas antropológicas, no momento de pesquisar o exótico, esse movimento acabou por identificar a necessidade de estranhamento do mundo que lhe deu origem, ou seja, a Cultura Europeia (que se colocava, como apontamos anteriormente, como centro explicativo civilizatório das demais culturas e países considerados por eles como “primitivos”, posteriormente identificada como um exemplo clássico de postura eurocêntrica) (Brasão, 2014). A Alteridade (Goldman, 2006) seria a manifestação buscada como ideal no exercício do relativismo cultural dentro do com promisso de efetivação das pesquisas etnográficas. A historicidade das pesquisas antropológicas, se fazendo presente no cabedal intelectual na formação de pedagogos no Brasil, objetiva articular questões teóricas nas problemáticas culturais da pesquisa educacional. Cabendo aos pedagogos e pedagogas a devida validação da busca da alteridade como uma nova dimensão reflexiva nas suas pesquisas e práticas educacionais. Sobre os desafios na prática de pesquisa, Goldman apresenta um conjunto de importantes reflexões sobre o conceito:
Penso, que alteridade seja a noção ou a questão central na disciplina, o princípio que orienta e inflete, mas também limita, a nossa prática. Parte da nossa tarefa consiste em descobrir por que aquilo que as pessoas que estudamos fazem e dizem parece-lhes, eu não diria evidente, mas coerente, conveniente, razoável. Mas a outra parte consiste em estar sempre se interrogando sobre até onde somos capazes de seguir o que elas dizem e fazem, até onde somos capazes de suportar a palavra nativa, as práticas e saberes daqueles com quem escolhemos viver por um tempo. E, por via dessa consequência, até onde somos capazes de promover nossa própria transformação a partir dessas experiências. (2006, p. 167).
Esse movimento é bastante relevante ao tratar a prática pedagógica que movimenta os conhecimentos antropológicos para finalidades educacionais. A alteridade, juntamente com a conexão da etnografia com as problemáticas antropológicas e a historicidade do desenvolvimento teórico da antropologia no campo pedagógico, resultaria na implosão de uma oposição simplista apresentada na introdução, na qual a antropologia seria o campo da pesquisa e a educação como campo da prática. A antropologia trabalhada na formação de pedagogos é uma ponte fundamental na conversão dos conhecimentos culturais, na teorização e da criação de novos caminhos pedagógicos, uma antropologia da prática pedagógica ainda a ser efetivamente consolidada.
Conclusões
Ao retomarmos a dimensão curricular dos cursos de Pedagogia, em contextos específicos de reforma curricular, buscamos na pesquisa em tela apresentar um conjunto de critérios objetivos, no sentido de apontar a relevância que a Antropologia como disciplina e seus conhecimentos constituem fundamentos importantes na formação do egresso do referido curso. Eles cumprem papel indispensável na formação pedagógica ao ampliarem a percepção das culturas e sua complexidade no que diz respeito ao reconhecimento da diversidade no campo educacional. Obviamente, não estamos definindo que apenas essa disciplina seria responsável por resolver todos os problemas existentes em todo e qualquer currículo. Identificamos um papel complementar frente às demais disciplinas ofertadas, apresentando um conjunto de contribuições específicas para a formação do egresso.
Reconhecendo que no interior das inúmeras reformas curriculares que se estabeleceram ao longo da história dos cursos de Pedagogia, atravessadas por ideais neoliberais (Malachen & Santos, 2020), combinadas com posturas muitas vezes pessoalizadas de professores embebidos em concepções de epistemologias da prática, oferecemos um conjunto de elementos objetivos que visam subsidiar a defesa da disciplina do currículo da Pedagogia dentro de uma posição que reconhece a importância dos fundamentos teóricos na formação dos pedagogos.
Essa defesa objetiva aproximar dos futuros pedagogos esses e outros conjuntos significativos de conhecimentos antropológicos, juntamente com o reconhecimento que o domínio dos mesmos provoca novas reflexões nas demais disciplinas ofertadas no currículo. Quando se estuda infância, história da educação, sociologia da educação, filosofia da educação, políticas educacionais, didática e se vivenciam experiências em estágio, para citar apenas algumas disciplinas presentes na maioria dos currículos de pedagogia (Albuquerque, Rocha & Simão), o olhar antropológico provoca avanços também nessas discussões, já que questões culturais atravessam de forma especial esses e outros temas. Processo este que coloca a antropologia de forma transversal no currículo, por ter seu lugar como disciplina e sendo ministrada por um antropólogo de formação.
A antropologia atenta para o risco que, sem as devidas bases teóricas da ordem dos fundamentos, as práticas facilmente conduziriam para posturas pedagógicas etnocêntricas, excludentes e pouco aprofundadas no que diz respeito ao reconhecimento da diversidade cultural. Invertendo os limites da epistemologia da prática, na qual “do ponto de vista do pensamento filosófico, a epistemologia da prática corresponde ao pragmatismo, que, ao reconhecer que o conhecimento está vinculado a necessidades práticas, infere que o verdadeiro se reduz ao útil” (Rodrigues & Kuenzer 2007, p. 58). Como bem definiu essa inversão utilitarista, o antropólogo Claude Levi-Strauss em sua obra O Cru e o Cozido (2002), indica que o alimento não é somente bom para comer (lógica utilitarista), mas é, também, bom para pensar. No mesmo sentido, a prática não se serve apenas para se fazer, mas também para se pensar o que se faz em diálogo com as teorias. E são exatamente os subsídios teóricos que qualificam o pensamento sobre as práticas.
Além disso, a Antropologia, como conhecimento fundamental para a formação de pedagogos e pedagogas, impediria um uso utilitário e simplificador da etnografia. Muito mais do que uma técnica de pesquisa, a antropologia oferece a oportunidade de ligar e religar problemáticas educacionais com problemáticas culturais e seus desdobramentos teóricos e conceituais no próprio campo educacional. Esse religar fundamenta um reconhecimento histórico e intelectual das pesquisas e teorias antropológicas em pesquisas educacionais, nas quais o conhecimento do desenvolvimento de história da antropologia, ilustrada por suas pesquisas mais importantes e relevantes, se faz necessário no cabedal formativo dos pedagogos.
A Antropologia ofertada como disciplina, atende ria critérios objetivos no seu papel de fundamentar teórica e metodologicamente a formação intelectual dos pedagogos. A discussão sobre o etnocentrismo e relativismo cultural, da alteridade, mostra o potencial que esses conhecimentos oferecem nos desdobra mentos do papel da escola em uma concepção alargada de democracia atravessada pelas diversidades culturais. Além disso, o conceito de desnaturalização passou a demonstrar que nossas formas de organização social se designam por nossos processos de socialização, desde a infância, e que os grupos sociais não devem ser diferenciados por características definidas a priori como dadas pela natureza (supostamente biológicas), mas ser entendidos pelas raízes culturais e étnicas13que são constituídas. O conceito de etnia, que designa um grupo que se autodefine e é definido pelos outros como “diferente”, que supõe algum tipo de identificação coletiva, como o compartilhamento de uma história comum, infinitamente mais profundo e preciso que o conceito de raça.
O próprio conceito de cultura se estabelece como ingrediente importante no próprio entendimento do processo educacional. No momento em que estuda as transformações do mesmo ao longo dos séculos, o que justifica sua recuperação estabelecida historicamente no campo antropológico. O conceito de cultura passa por diversas concepções, desde a ideia de cultivo do conhecimento, passando por práticas e hábitos de um determinado grupo, até as normas e regras simbólicas que estavam na mente das pessoas e não no comportamento.
Para não restar dúvida sobre o papel e importância da Antropologia no currículo dos cursos de formação de pedagogos e pedagogas no Brasil, esse prioridades formativas no contexto brasileiro não está calcado no objetivo de formar antropólogos no interior das faculdades de educação, mas sim fomentar novos conhecimentos antropológicos em educação e, mais especificamente, em pedagogia. A Antropologia não visa constituir competências, mas sim fortalecer os fundamentos reflexivos na criação de novas práticas e novos caminhos de pesquisa no campo da Antropologia e da Educação.
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